coluna | palavra : alucinógeno
um lugar diverso. o que eu era. sou. estou sendo no impacto improvisado da fala, contaminada por tudo aquilo que jamais deixei de ser e que, atado ao futuro dos tempos, converge para o instante único de uma vida. dizer “eu sou” é uma calamidade. a instância sobre a qual nascemos para errar. “eu” não como “eu mesmo”, mas como uma deidade perplexa pelo inconcluso modo de estar vivo. o outro. os outros sou eu. somos nós. a veleidade de amparo subjetivo quando não há sujeito – e nunca houve. o eu. uma inconsequência. sou. o desejo de ser algumas falas de Clarice Lispector nessa trilha que ora se torna uma convocação.
um dizer me convence. o texto é uma fala. o ensaio. o poema. a canção no banheiro. a barata exposta na intransigência do corpo inteiro. um texto. a fala quando se diz no eu de tantos outros:
Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.1
ruma a dúvida do destino para o lugar onde me encontro nas vezes em que tantas falas são agudas, algumas oblíquas: o mundo. o eu convida para si a inadvertência das vozes e seus nascimentos. uma traquitana de palavras, tal qual o nome inventado para dizer um alguém. e o alguém se prende no nome. passa a ser tantos ao habitar o entreato da nomeação, essa pluralidade paradoxal de vozes, que quanto mais empata, mais se torna ponte: “o nome é um acréscimo e impede o contato com a coisa. o nome da coisa é um intervalo para a coisa”.2
o eu e o nome. ambos se traduzem por espera, onde mundos são esquecidos e fundados. abarrotados de tantos passados, de tantos planos (futuros). o agora é um presente inacessível e eu… eu continuo sendo essa travessia que luta contra a própria nomeação. encerro na mesmice das letras a alcunha batismal com a qual me detenho em tantos entraves para ser exatamente igual a quem não era. dá até para arriscar dizer que ser é esse desafio de convidar o impecável nome à reinvenção. um interlúdio para a coisa conforme o espasmo instantâneo de realidades. por não ser eu era, por não ser esse que sempre sou, que constantemente é, habito eu todos tantos, vocês-outros, nós-enquantos. a obliquidade de uma linha envergada na pertinência do nome: um hiato.
confesso o despropósito do engano, quando a verdade é sempre uma falha de sistema. a confissão encerra a longevidade de se mentir para ganhar prorrogações. somos falhos por um erro de configuração momentânea, onde tempo e espaço se requerem como ato obsceno de cujas penetrações somos interferências. amamos aos montes. subjugados à necessidade de conferir aceites para o lado de fora da identidade.
eu sou a única pessoa no mundo que calhou ser eu.3
eis a maior verdade que nenhuma mentira seria capaz de forjar. a complexidade quântica em se conferir simultaneidade aos corpos quando ocupam, sim, um mesmo espaço e são tantos a todo tempo. cataclismos são provocados na superficialidade monótona de quem vive em sobreaviso. estamos, tomara, na narrativa de um triângulo escaleno desde quando somos um nome, desde quando aceitamos a encruzilhada do eu. no mundo inteiro, ser a única pessoa possível dentro de quem calhou ser quem se é parece aquela piada que a gente nunca vai entender, indiscerníveis que somos.
palavras, palavras… esse abuso de linguagem… claricianamente viemos buscar um amém:
dizer palavras sem sentido é minha grande liberdade. pouco me importa ser entendida, quero o impacto das sílabas ofuscantes, quero o nocivo de uma palavra má. na palavra está tudo.4
a liberdade confunde quem se tranca no normativo das horas, de quando se perguntam a todo o tempo que tempo é esse todo. não carece de explicações o sem sentido das palavras, mas apenas da desenvoltura para as muitas escutas ocultas. nem percebemos o quanto perdemos ao medir a educação dos termos de uma conversa. sabe quando uma pessoa se entusiasma com alguém e perde o ritmo das horas? então, difícil é conter essa perigosa alegria ao nos depararmos com um abismo humano, que só dá vontade de pular nele, e salve-se quem puder. essa é uma aprendizagem de escuta, necessária para os saltos às cegas no próprio nome, que são outros e tantos. na má palavra onde tudo se encerra e está, renascemos como náufragos de primeira viagem, prestes ao salto mortal entre nascenças.
ser um eu, uma perene inconclusão onde “tudo vive o outro”.5 tantas quantas margens forem necessárias para construir um rio, lá estarei. estaremos nós na corrente rumo ao deságue no mar, à procura da fonte, embora seja esta a continuidade fluente dos acontecimentos não planejáveis, tampouco procuráveis. pensa-se com isso, talvez, o marco inicial para uma vida, a qual irrompe na vertente silenciosa de seu velamento e aparece vivente no choro inaugural das eras. mesmo assim, a gente teima em perguntar:
como prolongar o nascimento pela vida inteira? 6
responder, sei lá quando saberei, se é que um dia saberei. prefiro a impertinência das vagas ao regular firmamento dos relógios. marcar o tempo tal como se encomenda comida em aplicativos: o ifood e sua devassidão simplória. pretendo me enganar com as marcas disso que se chama subjetivo, disso que inventaram para monumentar o eu num conceito gramatical, numa polissemia tal, cujo exercício de nomear se converta no despreparo para os termos convictos de sua enunciação. prolongar o espanto da irrupção, o êxtase de se começar novamente o mundo, embora desde sempre tudo já esteja iniciado:
nada se começa. É isso: só quando o homem toma conhecimento através do seu rude olhar é que lhe parece um começo. 7
é isso. o ato de assumir a existência ante o olhar. porque só o homem, a humanidade, confere existência às coisas. apenas. presunção? seria, se pensássemos ser o homem uma entidade que teve início. uma criatura. uma presença material dadivosa, resultante do gesto originário de se dar à luz a metamorfose barrenta da matéria. no entanto, nunca houve o primeiro homem. a humanidade, podemos aqui pensar, seria o prolongamento do ato genitivo de nascer, haja vista a concepção se confundir com o sentido de posse. consequentemente, o ato de ver seria a transposição do afeto no que se ilumina como coisa ao longo de uma tal maturação contínua. por isso, não pode haver um primeiro homem. um primeiro ente. um primeiro nome. há, possivelmente, movimento incessante e apreciação do que aparece e se conforma.
aquilo que parece ser se diz numa presença translúcida. rude talvez seja um jeito estranho de sinalizar a quase eternidade das coisas. essas dimensões compõem o começo das ações. compõem a ideia de origem, não apenas como incursão invasiva para dentro do destino, e sim como o prolongamento do que opera enquanto “instante-já”8 em sua quarta dimensão no acontecer poético do tempo. tudo como sempre já esteve, nem antes nem depois. a posse entre as coxas dos que se mantêm flagrantes na persistência do próprio existir. nascer tal como vir ao que já se era. seria uma customização divina? ser deus enquanto “o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem”.9 a sintonia da poesia enquanto eloquência entre a onisciente, onipresente e onipotente estância do engano. porque a ideia de verdade é uma opacidade simultânea entre as épocas que estão por vir, embora presentes desde antes do enquanto.
queria eu ser o que era durante a manifesta hora das preces. dizer o verbo como marco inicial, o princípio das frases ante o paraíso mítico das palavras. num empréstimo modal entre o prosaico e o poético, conceber que “em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer / nascimentos – / O verbo tem que pegar delírio”.10 não há contraditório ante a incursão ao útero da sintaxe. somente encanto. o arrebatamento congênito das imagens nas tessituras dos amanhãs conduz nossa paz ao zelo pelo silêncio das estações vagantes em nossas lembranças. a criança que somos no esquecimento das brincadeiras procura a voz do verbo que atravessa um modo gerundivo de dizer o para sempre das coisas. criança, nesse prolongamento criativo, da criação. o jogo sem rodeios no colapso labiríntico das ruas do real. o arriscar-se da linguagem em sua presencial modalidade de recolha. arriscar-se é tomar posse. ser o improvável. para nós, então, resta apenas a condição de ouvir em silêncio:
Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.11
p.s.: neste 2020 macabro se comemora o centenário do nascimento de Clarice Lispector. daí, numa pequeníssima homenagem, escrevo com a vontade de abocanhar o inesperável do mundo, a partir das leituras que ela me ofereceu. querer o máximo possível de suas fecundações em tão pouco espaço de escrita, um sacrilégio quase. mesmo assim, transitando entre algumas passagens em mim marcantes, este texto é um instante-apenas. um desenho da vontade de querer mais do que a fome, de morder mais do que a boca suporta. cogitar o orgasmo em cada milímetro de corpo. o desejo de gozar enquanto perduram em minha memória os pedaços de época em que esses livros foram lidos. embora alguns poucos títulos tenham sido aqui mencionados (só por uma questão de concentrar um corpus), a vastidão de sua referência no meu desejo de realidade é imenso. é necessário correr o grande risco da criação.
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1 A paixão segundo G.H. (1964)
2 Idem
3 Um sopro de vida (1978)
4 Idem
5 A paixão segundo G.H. (1964)
6 Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969)
7 Um sopro de vida (1978)
8 Água viva (1973)
9 A paixão segundo G.H. (1964)
10 Manoel de Barros – O livro das ignorãças (1993)
11 A paixão segundo G.H.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.