Coluna | Palimpsesto
Uma das entrevistas de que mais gosto da Clarice Lispector é a feita com a socialite Teresa Sousa Campos, na época considerada o primeiro figurino do Brasil de acordo com a lista das dez mais elegantes de Ibrahim Sued. A entrevista foi publicada na coluna “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”, na Revista Manchete no dia 14 de dezembro de 1968. Já do texto introdutório, bastante significativo, vale a leitura:
Tive a idéia de entrevistar Tereza Souza e Campos porque eu não simpatizava com ela. A “mulher mais elegante” não me interessa.
Quando eu telefonei para marcarmos o diálogo e o ponto de encontro — Country Club, escolheu ela — expliquei-lhe que, apesar de ela ser o primeiro figurino do país, não era sobre isso que eu a entrevistaria. Ela riu brincando: “Mas ser o primeiro figurino do país já é alguma coisa!” Nada respondi. No entanto, responderia: queiram os céus que Tereza não seja apenas o primeiro figurino do país, senão terei que lhe explicar o que é uma “pessoa” . E que o Brasil precisa de muito, e não precisa de nada de primeiro figurino.
Enfim, êste é o mundo em que vivemos, e em todos os países do mundo há as mulheres que se dedicam de corpo e moda à elegância para se sobressaírem de qualquer modo. Para isso é preciso ter dinheiro, bom-gôsto, preocupação com o assunto, ousadia, etc.
Acontece que por ocasião do telefonema tive que ficar em guarda: a voz de Tereza era expressiva e me agradava. Iria ela me conquistar para o seu lado? Não, não sou fraca.
E assim nos encontramos. Tereza é diferente do que aparece nas fotografias e, lamento dizer, é bem mais simpática. Eu tinha que ficar realmente em guarda, porque minha tendência é gostar das pessoas. E até dos meus inimigos, que não considero inimigos.
(LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete, Rio de Janeiro, ano 16, n. 869, p.40-41, 14 dez. 1968).
Já no início do texto, a explicação sobre o porquê da entrevista, que a princípio deveria ser elucidativa, causa ao leitor certo estranhamento. Clarice escolheu travar um diálogo possível com Teresa Sousa Campos não porque a admirasse ou algo do gênero, mas, ao contrário, porque não simpatizava com ela.
A escritora narra em seguida o primeiro contato com a entrevistada, via telefone. No entanto, a conversa se revela mais pelo silêncio, pelo que não é dito, do que pelo curto diálogo estabelecido. Clarice se exibe na resposta não proferida, que, aliás, dará o tom da entrevista: “queiram os céus que Tereza não seja apenas o primeiro figurino do país, senão terei que lhe explicar o que é uma ‘pessoa’ . E que o Brasil precisa de muito, e não precisa de nada de primeiro figurino.”
Para enriquecer a análise, trago comigo uma observação sagaz de Nelson Rodrigues sobre esse texto na crônica A Inteligente e a elegante, publicada em O Globo, no dia 7/01/1969, que, por outro lado, desconstrói todo o raciocínio de Clarice:
[…]
Mas o que é mesmo que eu ia dizer? Ah, já sei. Eu ia dizer duas palavras sobre a entrevista que a Clarice Lispector fez com Teresa de Sousa Campos[1]. Duas páginas da Manchete, com um vasto retrato de Teresa, retrato que nunca foi Teresa, ou melhor dizendo, retrato que é a anti-Teresa. Mas eu disse “duas palavras” e ainda bem que, em nosso idioma, duas palavras são duzentas.
O curioso é que são duas entrevistas e explico: — entrevistando Teresa, Clarice se auto-entrevista. A escritora diz, de começo, com exemplar lealdade, que não simpatizava com Teresa. E continua: — “A ‘mulher mais elegante’ não me interessa”. Há mais: — “Há problemas mais sérios do que a moda, individuais ou não individuais”.
Aqui começam minhas dúvidas. Será que, para Clarice a “elegância” é um defeito? Será que cada um de nós se deve irritar com “a mais elegante”? Será que o justo, o certo, o correto, o nobre é “não ser elegante”? E se fosse a “menos elegante”, alguém ganharia com isso?
E, sem querer, a admirável romancista lembrou-me o Paulo Francis. Meses atrás, o crítico escreveu, se não me engano no Correio da Manhã, que hospital é mais importante do que teatro. Já me pareceu meio imprudente comparar funções e finalidades diferentes. Por outro lado, o hospital é mais importante para o doente e o teatro mais importante para a platéia.
Escreve minha amiga Clarice que há “coisas mais importantes”. Claro. Sempre há “coisas mais importantes” do que escrever romances, por exemplo. Somos uma terra de analfabetos. Alguém poderia perguntar: — “Por que escrever romances que a maioria de analfabetos não vai ler?”. Todos nós, intelectuais, devíamos estar construindo escolas ou, não sei se na pior ou melhor das hipóteses, ensinando o que sabemos. E, ao mesmo tempo, que direito temos nós de comer um bife, enquanto milhões passam fome? Os nossos são tratados a pires de leite como as gatas e as úlceras. E os filhos dos outros, de tantos outros, que são devorados pelas ratazanas? etc.etc.
Antes de se avistar com a entrevistada, Clarice faz a seguinte prece: — “Queiram os céus que Teresa não seja apenas o primeiro figurino do país!”. Se ela for apenas isso, a romancista terá de explicar-lhe o que é uma “pessoa”. E acrescenta: — “É que o Brasil precisa de muito, e não precisa nada de primeiro figurino”.
Observo que novo e cavo abismo se abre entre mim e a minha amiga. Em primeiro lugar, por que a “pessoa”, entre aspas, não pode se vestir bem, e cheirar bem, e ser bonita, por quê? A pessoa tem de andar de tamancos, e pôr as mãos nas cadeiras, ou cuspir em quem passa por baixo? Eis o que eu queria pedir a Clarice: — que me explicasse como é a prodigiosa “pessoa”. E por que o “primeiro figurino” não pode ser “pessoa”?
Eu diria que o Brasil precisa do “primeiro figurino”, como das lavadeiras, da mulher linda, como da feia, da simpática, como da zarolha. Dirá a ficcionista que o “primeiro figurino” é apenas o “primeiro figurino” e nada mais. Antes de mais nada, já acho muito ser o “primeiro figurino”. Mas vamos admitir que a elegância seja uma limitação. Mas as mal vestidas também só andam mal vestidas e nada mais. O simples fato de andar suja e cheirando mal nunca fez uma heroína, uma Joana D’Arc, uma Bernadete ou uma madame Curie. (Rodrigues, 1996, p. 64-65)
Rodrigues estende sua crítica ao diálogo propriamente dito, quando questiona as perguntas “Qual é sua vocação, Teresa?” e “Por quem você torce na guerra do Vietnã?” e sugere várias respostas àquelas perguntas, ao que conclui:
Eis o funesto, burlesco e colossal engano dos intelectuais brasileiros. Vão para a janela, cheiram uma camélia e suspiram pelo Vietnã. E nem desconfiam que estão chorando o defunto errado. Não se lembram do Brasil. Teresa podia ter dito que, para nós, o Vietnã não tem importância, ou por outra — há, aqui, nas nossas barbas alienadas, importâncias muito mais próximas, visíveis, tangíveis, urgentes, pungentes, plangentes. Somos um terreno baldio, que não povoamos; o Amazonas está lá, esquecido como se não fosse Brasil; as nossas crianças morrem como ratos; há populações brasileiras apodrecendo de fome. E nós chorando pelo Vietnã. (Rodrigues, 1996, p. 66)
A crônica desestrutura, um a um, os pontos de vista da entrevistadora sobre a entrevistada. Há dois pontos, contudo, que quero analisar aqui, pois acabam por assinalar a riqueza da entrevista. Nelson Rodrigues afirma tratar-se de duas entrevistas, uma entrevistando Teresa e outra Clarice se autoentrevistando. Outro dado curioso, para o cronista, o vasto retrato que ocupa as duas páginas da revista é na realidade o de uma anti-Teresa, o que nos induz a entendermos a Teresa da entrevista, como o seu avesso. A alteridade tonaliza toda a entrevista, desde as primeiras linhas, quando Clarice afirma querer entrevistar Teresa Sousa Campos “por não simpatizar com ela”, a cogitarmos a hipótese de Tereza também representar o unheimlich da própria ficcionista. Ainda sobre a crônica, uma vez que a retratada na entrevista nunca foi Teresa, nos perguntamos também quem é Tereza Souza Campos para Nelson Rodrigues? Seria por acaso a Teresa Sousa Campos capaz de formular repostas brilhantes ao seu interlocutor, como a seguinte “o Vietnã não tem importância, ou por outra — há, aqui, nas nossas barbas alienadas, importâncias muito mais próximas, visíveis, tangíveis, urgentes, pungentes, plangentes”? Tereza Souza Campos, Teresa Sousa Campos, anti-Teresa, todas partes do que forma uma “pessoa”, que, sob tal condição, tem inevitavelmente algo de bom pra contar.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.
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Referências
RODRIGUES, Nelson. O Remador de Ben-Hur: confissões culturais; seleção e organização Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
1 Enquanto na crônica de Nelson Rodrigues, o nome Teresa Sousa é grafado com “s”, na entrevista, Tereza Souza é grafado com “z”.