DESAFIO DE VIOLA – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


A entrevista com José Carlos de Oliveira para a Clarice Lispector, publicada no dia 5 de outubro de 1968 na revista Manchete, me conquistou na primeira leitura. Carlinhos de Oliveira era um provocador, a ponto de Clarice denominar a entrevista como um desafio de viola:

Quando marquei entrevista com Carlinhos de Oliveira jamais pensei que ela se tornaria como que um desafio de viola, o que nos divertiu e nos aguçou: tudo era tão rápido. Esta entrevista está “eivada” (jamais pensei que um dia usaria esta palavra) está eivada de várias palavras oficialmente impublicáveis. No entanto os leitores podem suprir as lacunas com os palavrões que acharem mais convenientes.
[…]

Um desafio de viola realizado, todavia, de uma forma peculiar, conforme explica Clarice no decorrer do texto:

[…] Nosso modo de entrevista estava original: eu escrevia na fôlha de papel a pergunta e passava-a para Carlinhos; êle lia, respondia também por escrito e me devolvia a página. Fizemos, pois, a entrevista sem sequer uma só palavra pronunciada. Estávamos no restaurante Antonio’s, onde Carlinhos ia jantar:
[…]

A comparação entre a entrevista silenciosa e o desafio de viola faz da escrita o instrumento afinado de um repentista. E neste misto de som e silêncio, música e poesia se formam o EU e o OUTRO.

A primeira pergunta de Clarice indaga ao entrevistado quem é ele, ao mesmo tempo em que se interroga quem é ela. A pergunta “Por Deus, quem sou eu?” feita por Clarice Lispector se dirige tanto ao entrevistado quanto à própria escritora, que já no início demonstra seu interesse em perscrutar o EU e o OUTRO. O EU existe na relação com o OUTRO ou, nas palavras de Colapietro, o “self individual é, no seu ser mais íntimo, não uma esfera privada, mas um agente comunicativo”, por isso, as respostas possíveis às perguntas de Clarice se erigem efetivamente ao longo do diálogo. Analisemos os seguintes trechos:

[…]
— Carlinhos, nós dois escrevemos e não escolhemos própriamente essa função. Mas já que ela nos caiu nos braços, cada palavra nossa devia ser pão de se comer.
— Isso é absurdo. Por exemplo eu digo …………………..e ninguém publica. E então estamos condenados a guardar uma língua que é apenas uma coleção de palavras. O resto é literatura. E agora eu pergunto: 1) Clarice, por que é que você escreve? 2) Clarice, porque (sic) você não escreve?
Acho que Carlinhos, usando palavrão, estava me desafiando, porque esta não costuma ser a minha linguagem: êle pensava que eu recuaria ou a revista cortaria a palavra. Mas se ela é tão importante — ei-la sugerida para a maior glória de Deus. […]
— Respondo às duas perguntas: é tarde demais para mim — escrevo porque não posso ficar muda, não escrevo porque sou profundamente muda e perplexa.
— Ora, deixe de frescura!
— Estou falando tão a sério que você não está suportando e sai pelos lados, não me enfrenta.
— Se você está falando muito a sério é que você pensa que falar a sério tem algum valor. Pois bem, eu não acho.
— Então vamos deixar tudo morrer?
— Mesmo que não o fizermos, tudo morrerá!
[…]
Acho que Carlinhos continuava a me desafiar escrevendo na fôlha de papel expressões que êle próprio não usa nas suas crônicas. Mas a mim tanto se me faz. As palavras não me assustam, nem mesmo as que não fazem parte de meu vocabulário.
[…]

Da primeira afirmação sobre seu entrevistado, Clarice já é contrariada, a transportar-se o entrevistado a uma espécie de “zona movediça”, que pouco se enquadra às classificações de sua entrevistadora, especialmente no que tange o pronome NÓS, “nós dois que escrevemos […]”. A propósito do pronome nós, Carlinhos de Oliveira apenas o aceita como forma de provocação: “Nós somos uns idiotas [..]” e o repele novamente com as duas perguntas direcionadas a sua entrevistadora, “por que você escreve?”, “por que você não escreve?”.

Nos parágrafos descritivos intercalados entre as falas identificamos outros dois aspectos relevantes: 1) ainda que tenha voz, o entrevistado sempre será OUTRO, uma vez que inscrito na caligrafia da autora do texto, Clarice Lispector; 2) aquilo que é exposto na fala se confronta com aquilo que é descrito nos parágrafos. No primeiro parágrafo mencionado, Clarice supõe a intenção do OUTRO, “Acho que Carlinhos, usando palavrões, estava me desafiando […]”, com base no que assinala como elementos constitutivos do EU “porque esta não costuma ser a minha linguagem”. O outro parágrafo assinalado se inicia com a afirmação semelhante ao do parágrafo anterior, “Acho que Carlinhos continuava a me desafiar”, mas com uma ressalva, aqui os palavrões também não costumam ser a linguagem do entrevistado, uma vez que são expressões que “êle próprio não usa nas suas crônicas”. Novamente, Clarice equipara os elementos que constituem o EU e o OUTRO, como se nas entrelinhas encobrisse o refrão: “o que nos distancia é o que nos aproxima”, tal qual foram ocultados no texto os muitos palavrões dedilhados no pedaço de papel que dava tom ao “desafio de viola”. Entretanto, nas falas seguintes ao parágrafo, EU e o OUTRO se diferenciam, se desentendem, se estranham:

[…]
— Nós não nos entendemos. Fazer romance não é sucesso. […] Fazer sucesso é chegar ao mais baixo do fracasso, é sem querer cortar a vida em dois, e ver o sangue correr. Nós dois, Carlinhos, nos gostamos um do outro, mas falamos palavras diversas.
— Falamos linguagem diversa, é verdade. Eu prefiro ser feliz na rua a “cortar a vida em dois”.
— Eu prefiro tudo: entendeu? Não quero nada, não quero sequer a escolha. Mas me fale dos seus planos, José Carlos.
— Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.
— Nem eu meu caro. Eu estou vendo a hora em que começaremos dentro de tôda a amizade a brigar. Também posso lhe dizer que se viver é beber no Antônio’s, isso é pouco para mim. Quero mais porque minha sêde é maior que a sua.
— Evidentemente.
— Eu gosto muito de você, Carlinhos.
— Mas aqui não estávamos falando de amizade, e sim mostrando que uma escritora como Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver. É por isso que eu digo: devemos jogar uma bomba atômica na Academia Brasileira de Letras.
[…]

Na última fala, o cronista se refere ao seu interlocutor na terceira pessoa do singular, ou melhor, no nome “Clarice Lispector”, ao mesmo tempo que atribui outras definições além das já preestabelecidas, a escritora já consagrada passa a ser também aquela que “tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver.”

A primeira parte da entrevista termina com a fala de Carlinhos de Oliveira, em que curiosamente retoma o pronome nós ao diferenciá-lo do pronome eles:

[…]
— Tudo nos humilha. Ninguém acredita em nós. Tudo está certo para êles, mas não nos pedem senão idiotices. Esta é uma chave de ouro. O resto é literatura. […]

Mas a entrevista não é finalizada com essa fala, pois Clarice atende o cronista, que lhe pede outra entrevista:

[…]
No dia seguinte Carlinhos quis dar outro tipo de entrevista, mas não pude aceitar porque se eu fizer duas entrevistas com cada entrevistado o tempo não rende. Além do mais acho que uma quase briga entre dois amigos não é de se temer. E na amargura de Carlinhos vejo mesmo é sua bondade profunda e sua revolta de homem de vanguarda.
Bom. Resolvi dar outra oportunidade a Carlinhos porque êle merece: tinha mostrado apenas parte dêle e não um retrato de corpo inteiro. De modo que o desafio de viola continuou e com o mesmo sistema: sem uma palavra dita, só “tocado” na viola do papel. Encontrei-me com êle exatamente quando Carlinhos tinha escrito uma crônica que me deixou emocionadíssima: Noite em Lágrimas. Êle começa assim: “Para que não pensem que deixei de ser um indivíduo, mostrei-me a chorar de noite, eu por causa das coisas que magoam o homem.” Meu gôsto seria publicar a crônica inteira. Mas deixo o indivíduo Carlos de Oliveira falar […]

Clarice apenas aceita outro diálogo com Carlinhos de Oliveira porque acredita que ele tinha apenas mostrado parte dele, e não um “retrato de corpo inteiro”. Ao exibir parte dele, Clarice já o define como alguém que na sua amargura a faz enxergar uma bondade profunda e uma revolta de homem de vanguarda. Mas pretende, entretanto, defini-lo por um retrato de corpo inteiro, retrato do qual alguns traços já se esboçam na crônica Noite em lágrimas, em que se anuncia indivíduo.

Convém lembrarmos que o título do primeiro livro que reúne algumas das entrevistas realizadas pela ficcionista é justamente De corpo inteiro. Porém, não é o entrevistado de corpo inteiro que a entrevistadora mostra, e sim seu retrato. Posto que no retrato, tira-se “a imagem de uma personae; do visível retira-se uma figura, produz-se um sujeito que se faz superfície a ser olhada e que olha.”, se apenas um pedaço, ou de corpo inteiro, o sujeito sempre estará à mercê de cada novo olhar. Sujeito que é também falante/ouvinte, e, portanto, também estará a mercê de cada nova fala, novo sussurro, nova pausa. 

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.