coluna | palavra : alucinógeno
sentei no codorna do feio para festejar o menor amor do mundo. de algum modo, participei do banquete ao viver o amor longo ou o mais curtinho, só de uns segundos, desses de quando a gente olha e, num instante, foi-se embora uma vida inteira. também me comprometi com a demanda de um círculo invencível de cores, quando se vive, quando se é o amor dentro das pessoas, nos abraços e nos goles, nos dedos engordurados e salpicados de farofa. amor é sempre maior, mesmo quando tão pequeno, mesmo quando a gente até esquece que ama. no livro o menor amor do mundo, de rafael zacca, alguma coisa assim comigo foi possível.
você vai gostar de saber
estavam todos lá
todos mais jovens
no calor desolado
do codorna do feio
nossa carne
de pior qualidade nosso
amor de segunda
[…]
estava quente e as horas se estendiam ao infinitivo relevo das letras. as falas, a exaltação digna de mais um trago, e o círculo se abrindo para quem chegava. o banquete tem dessas coisas. um amontoado feliz de gente que ampara a rota dramática dos corpos. não faltava ninguém, e se comungava do breve galeto no sabor das ideias. mas um galeto não é tão breve / quanto o amor. no galeto mais se demora quanto mais as mãos se lambuzam e os dentes se cravam na carne. no amor, é algo como um besuntar-se de ossos, dada sua geografia e consistência ante a calcificação do afeto. se a gente desiste, amar se torna uma coisa breve, brevíssima, que nem tampa a fome. enquanto isso, na sucção do tutano a roda cresce com quase todos presentes: heyk julya / victor flora / diva e até o feio pra falar do amor e com amor na dedicação eloquente de quem vai ao banheiro e nem precisa fechar a porta. ficam o riso o beijo o vínculo pela saudade e lembrança que, tomara, não seja esquecida.
nosso / amor de segunda e o brinde durante o costume de dormir fazendo fila na hora dos sonhos. nada tão intenso quanto perder o jeito diante da arquitetura da ternura. quem sabe, um discurso sobre eros desfaça o hiato presunçoso na escala da espera. a gente pode até pensar que não haja espera no afago. mas espera existe enquanto houver quem compareça, apenas pelo vital instinto de sobreviver às investidas de quem já foi.
gente vai, gente vem. o sol a pino. o poema é construído conforme o papo fica mais largo, profundo. nenhuma metáfora é vã. o repertório de mergulhos segue o ritmo oportuno dos pratos empilhados para mais espaço na mesa. colocam-se mais cadeiras também porque sempre há mais pessoas para compor o breviário erótico dos dentes palitados. é preciso sorriso limpo para falar de amor. é necessário jogo de cintura na hora de cavalgar o verso porque amor é amor um lance é um lance um drible é um drible e não é enjambement, e essa é uma daquelas frases que se a gente tentar mexer estraga, porque a sagacidade foi demais.
no bar, todo mundo fica diferente quando se ama o primeiro amor. e o primeiro, e o primeiro, e o primeiro. só há primeiro amor no amor. essa diferença é uma singularidade na qual cada um é o que ou quem se amou no amor. a liturgia para essa coisa talvez pudesse se chamar colapso, porque ninguém se equilibra inteiro por muito tempo durante o coração temperado para ser cravado por um espeto. quem ama tem fome. quem ama perde o fôlego e pede a conta. mas não tem erro, agora é quando as cabeças se juntam para o cálculo do barato. difícil é contar moeda quando o que se enxerga não está mais na palma da mão. é quando tudo se resolve no abraço. não sei se já te contei, mas, no bar, abraçar é entrar em estado de orgia com a solidão do outro.
é filho da fome
e acontece muito de nascer
da vida injusta
entre os fundamentos
bem fundo na terra
na asa das pedras
[…]
doer o estômago de tanto vazio e devorar a ânsia pela vida nascida entre uma rodada e outra. quando todos estão sentados e se concentram na última linguiça do prato nasce a injustiça tão fraterna entre as gentes. o benefício do plágio faz com que se perdoe a covardia. ninguém pega a última linguiça, todos preferem se enganar com aquela rodela de cebola quase esquecida. mas o prato é testemunha do erro proposital das garfadas. talvez se tivesse palito, a coisa seria mais fácil. do mesmo modo que fincar na terra o nascimento não desajusta o voo das pedras. asas existem para isso: fazer voar. coitadas das galinhas.
o falatório só aumenta. é muito eros e alguma coisa de thanatos. o equilíbrio não está em se zerar as forças, mas em fazer mover o andamento do desejo na tentativa de zerar as forças, mas nunca dá. os nomes se juntam e pedem pra falar: khalil meleca patrick heyk guilherme feio marcellinha flora júlia beatriz fernando carla sylvio maria beatriz antoine rodrigo laura cadu marília andré ana carolina michael dimitri aline estefânia murilo victor lucas raquel nathalia marianna amanda julya leonardo marcelo raiane gabriela denilson sophia daniel rafael carlos eduardo matheus solange érica luíza fabiana raí kátia marisa bruno mariana carlos otávio rhana luciano pablo diego ricardo…
se não pedem, falam assim mesmo. a beleza do negócio é esse improviso amoroso no dizer em roda, na mesa. a gente sai de casa sem saber muito bem a distância entre as frases. pega um lugar no ônibus, vai a pé, de carro, como der. o bonito é que, seja lá como for, ninguém voltará como era. o menor desejo, o menor trejeito do mundo, que faz do corpo um itinerário ambíguo para mares e ruas, aquele lance de abraço orgíaco que falei lá em cima. por isso, chegar ao bar é uma consagração onde é fácil se perder no encontro. fica então o convite, é bom quando se pega uma curva, inventa um atalho que mais faz demorar do que encurtar uma trajetória. a gente vai conversando no caminho, mas se sozinho, vou te dizer como faz: fica na esquina da dias / da cruz com a dr bulhões / na região do grande / méier no engenho / de dentro antes / da água santa / perto da abolição.
nesses preparos, o primeiro que chega esquenta o lugar pros outros. do lado de fora, as casas se tornam cada vez mais casas. os sobrados, os apartamentos afastados, muito se demora na lembrança de quando a gente dança sem saber com quem. os amores não correspondidos nas menores decepções do mundo, nos menores tocos, nos menores primeiros beijos. tudo muito imenso, muito intenso. dá até pra fazer vídeos sobre, postar no instagram. ia ficar bonito. talvez o motivo pra isso tudo seja a fome que a gente sente. fome de essência. fome de fome.
[…]
bom mesmo não é
o desejo o tanto que seja
mas a tentativa desesperada
de desejo
no meio da barriga o
intestino interrompido zerado
quando não dá pra comer mais nada
entre a boca e o cu
manchados da mesma cor
lábios e pregas sulcados
das ventosas
pois entre polvo-coração
pulsando roxo entre lençóis
freáticos
[…]
p.s. trouxe cá pra conversa um recorte do livro o menor amor do mundo (7Letras, 2020), de rafael zacca. dividido em três partes: “o menor amor do mundo”, “todos esses nomes pássaros estranhos” e “o banquete no codorna do feio”, preferi me concentrar na terceira, na qual, como já se disse por aí, é feita uma peculiar transluciferação de O banquete , de platão. acho bonito quando se realiza essa apropriação, deixando-se aparecer algo tão singular, em que se fortalece a identidade do autor ao mesmo tempo em que se enraízam os não-lugares do poético. também lembrei da laura liuzzi dizendo que quando citou a ana cristina cesar em seu livro Calcanhar (7letras, 2010), por medo, ela manteve todas as aspas. por medo mesmo, porque ela queria era incorporar a ana em seus poemas. a gente tem uns medos estranhos, plágio assalto pausa. eu também costumo ter esse medo quando escrevo aqui na coluna, medo de não de fazer uma referência bonitinha. daí, coloco todas as aspas. mas dessa vez arrisquei. tirei as aspas, embora mantidos ficaram os parágrafos de citação com trechos maiores dos poemas. ficamos então um pouco misturados nessa escrita na qual se agregam os versos do zacca e minhas leituras interventivas. lembro até que uma vez, ainda nesse ano de 2020, numa oficina de poesia com o carlito azevedo, discutia-se o quanto é difícil tomar posse do poema do outro e torná-lo nosso, fazer dele um texto sem aspas. pra alguns, uma heresia quase. por medo, muito por causa do medo, acontece o exercício das aspas. mas se houver pulo, se a gente trouxer o escuro mais pro claro, e vice-versa, não haverá mais nem meu nem seu, será tudo nosso. e sem aspas. por ora, fiquemos neste texto. que não é uma resenha. talvez seja apenas um modo estranho de dizer que gostei à beça do livro do zacca, do seu modo entrosante de escrever.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.