Coluna | Palimpsesto
As paredes douradas repletas de mosaicos refletiam as luzes do museu. Sentada no banco de madeira, J. observava um homem contando a história de Alice para um grupo de crianças. A língua era o inglês e ela tentava acompanhar o vocabulário parcialmente conhecido. Enquanto isso, rascunhava um desenho da cabeça do contador de histórias, mesmo que estivesse desproporcional, ela seguiu traçando o papel branco com seu lápis. A reunião da iluminação, o cheiro de livros antigos, a voz suave do homem, gerava nela uma espécie de névoa interna, como se o mundo parecesse mais leve, próximo, real.
Estava quase na hora, e quando A. chegou ela sorriu e a névoa desapareceu, deixando traços atmosféricos.
Ele também não conhecia bem aquele lugar, mesmo sendo americano, era tão novidade para ele quanto para ela. Para um primeiro encontro o clima era agradável entre eles. Quando adentraram a sala dos objetos (furtados) do Oriente Médio ela olhou para o Tutancâmon jovem em posição curiosa: abraçava as pernas, e então a névoa retornou, dessa vez mais úmida, e ele sentiu também as mãos molhadas. J. parecia a ele mais bonita que nas fotos, mais baixa talvez, mas definitivamente a sua presença tinha um odor e ritmo impossível de captar no mundo virtual.
Ao dar voltas ela se deparou com uma pequena tabuinha de argila detrás do vidro, onde se encontrava escrito
Ritual for the Observances of Eclipses
Mesopotamia, seleucid period
(ca. third-first century B.C.)
Baked clay
MLC 1872
J. tirou o celular da bolsa e fotografou. Não entendia muito bem o que significava, a escrita na tabuinha era em ideogramas, ou não? Ele chegou próximo dela e o cheiro de ambos se misturou e no ambiente, de alguma maneira, aquele traço úmido foi depositado nas ranhuras de todos os objetos, antecipando a finitude das coisas no dilúvio sutil dos dias.
Mais tarde eles comeram em um restaurante asiático e fizeram amor no apartamento dele, após uma longa viagem de táxi até um bairro distante. Ela gostou de virar para ele, olhando de baixo, lhe abrindo as pernas para que lhe penetrasse segurando seu quadril. Depois de muitos anos essa imagem e a tabuinha do eclipse se misturaram na cabeça dela, com o cheiro úmido e o silêncio da biblioteca e da madrugada.
*
Passaram algumas voltas na terra e ela retornou à mesma cidade, coisa que jamais poderia prever, e levou então V. para visitar o mesmo museu.
Assim que entraram ela o abraçou, segurou seus braços arrastando até a Sala do Eclipse, como ela havia nomeado.
Ao chegar frente à tabuinha de argila apontou e disse:
— Não é bonito?
O desejo apareceu numa curva improvável para ele, sentiu a pele da nuca arrepiada, uma presença úmida, no meio das pernas de J. deslizou até a calcinha um líquido quente.
Dessa vez ela fotografou a tabuinha com sua câmera Nikon.
Mais tarde eles fizeram amor no apartamento de uma mulher louca, onde o banheiro tinha piso aquecido e televisão. J. nunca tinha visto nada parecido e nomeou de Banheiro da Shakira.
A cama era branca, ele estava sobre ela, lambendo suas orelhas, mordiscando de leve, até que ela gemesse alto. Quando ela abriu os olhos turvos de prazer viu a tabuinha à sua frente, como se impressa em cores negativas na sua retina, assim como ficam as coisas em dia de sol forte.
Depois comeram na cozinha, ele vestido com a camiseta dela, ela com medo do fim.

Quando o eclipse começar, o … sacerdote acenderá a tocha e fixará no altar … Enquanto durar o eclipse, o fogo sobre o altar você não removerá. Uma endecha pelos campos que entoarás; uma endecha pelos riachos que a água não deve devastar, tu entoarás … Enquanto durar o eclipse, o povo da terra removerá seus capacetes; eles cobrirão suas cabeças com suas vestes. A catástrofe, o assassinato, a rebelião e a aproximação do eclipse não … eles clamarão alto; por lamentação, eles enviarão seu clamor ….
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Camilla Loreta é formada em Audiovisual e História da Arte, em São Paulo. Pesquisa a escrita, o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais. Seu trabalho foi publicado pela Editora Caixa e participou de feiras com a Plana (SP e RJ) e Tijuana (SP e RJ) em livros e zines individuais e coletivos. Dirigiu dois curtas-metragens, Clara e O Silêncio das Pedras, sendo esse último selecionado para a Semana Paulista de Curta-metragem. Participou de diversas residências internacionais e nacionais, entre elas: Kaaysa em Boiçucanga (Brasil) com o estudo Como se salvar de afogamentos; Encosta Residência na Ilha do Mel (Brasil), onde desenvolveu projetos de impacto local, dialogando com as comunidades e histórias da região; a residência solo FUGA (Nova Iorque) que rendeu seleção no Festival do Filme Livre, exibido em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em 2019; The Artist meeting em Marianowo (Polônia), onde iniciou a escrita do livro Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela, será romance de estreia como escritora, no momento em fase de aguardo para o mundo se assentar. Entre suas principais referências estão: Virginia Woolf, Matsuo Bashô, Ana Maria Gonçalves, Gita Metha, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carola Saavedra e Haruki Murakami.