O ÚLTIMO COPO – ANDERSON BERNARDES

Coluna | Palimpsesto


A espuma dissolveu-se na madeira da parede. Já o copo espalhou-se em pedaços pela cozinha, por baixo do armário, da geladeira e do fogão. Alguns estilhaços ficaram pelo caminho, invisíveis, a espiar o resto dum chilique diante da pia atulhada de louças do almoço, e do café da manhã, e da janta do dia anterior. Mas era nada o que se via. Ou apenas um silêncio estático e molhado, com cheiro de detergente neutro. Guilherme apoiou as mãos no inox do tampo da pia e passou os olhos pelos talheres ensebados, pelos pratos sujos do feijão com arroz, pelo filtro de papel com o café usado, e pela esponja verde, amarela e velha. Depois ateve-se aos outros copos, ainda inteiros, ainda capazes de conter em si os restos do café com pouco leite e a espuma engordurada da limpeza das panelas que exibiam-se brilhosas no escorredor de louças, salvas de qualquer frustração. Os copos eram aqueles de requeijão, ainda com a marca dos rótulos arrancados com displicência. Bem diferentes do outro, espatifado contra a parede, derradeiro remanescente dum conjunto de seis, comprado numa loja de departamentos por ocasião duma visita especial que fazia por merecer algo melhor que uma embalagem de lacticínio reaproveitada. O conjunto extinguiu-se aos poucos. Parte pela fragilidade do material que nem de longe fazia frente à resistência de um bom copo de requeijão, parte pela falta de habilidade de Guilherme com as tarefas domésticas, deficiência mais evidente na lavagem das louças. Lamentou apenas a primeira baixa — o copo escorregou-lhe das mãos dentro da pia mesmo, sem querer. O seguinte despencou do braço do sofá, derramou suco pela sala inteira e não deixou saudade, só raiva. Um deles apareceu trincado sem mais nem menos, coisa de assombração. Outro, ele fez questão de jogar no lixo. Tinha um defeito de fabricação que lhe machucava os lábios. Demorou a descobrir. O quinto, não lembra. Teria sido roubado? Mas quem arriscaria a reputação por um reles copo? O último também tinha cumprido sua sentença, mas parte dele cravou-se no centro da planta do pé de Guilherme, justo quando ele decidiu findar aquela contemplação da imundície e terminar de uma vez a louça. Ignorou a fisgada, pisou firme e desenhou sangue no piso. Livrou-se de toda a sujeira da pia, baixou os olhos e só então viu a mancha vermelha ao redor de si. Foi atrás de uma vassoura e de uma pá para juntar os cacos e evitar que mais alguém se machucasse. Não havia “mais alguém”. Quinze minutos de varrição e busca aos menores vestígios daquele último copo e restou apenas sangue por toda a cozinha. Guilherme olhou com orgulho para aquela limpeza coagulada. Sentiu mais uma vez a ponta do vidro na carne. Poderia morrer assim, sangrando devagarinho. A visita que merecia mais que um copo de requeijão não voltaria nem para encontrá-lo morto no chão da cozinha com um pedaço da história dos dois enfiado na planta do pé. Mas não. Encontrou uma pinça e puxou o caco pontiagudo, tamanho de um clip de papel dos grandes. O pano que usaria para secar a louça serviu-lhe de atadura para estancar o sangramento. E foi dormir, esperar que a noite chegasse. Quem sabe, limpasse o piso.

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ANDERSON BERNARDES é autor do romance não arranquem os vermes de mim (Oito e Meio, 2019). Formado em Comunicação Social – Jornalismo, com especialização em Design Gráfico, é sócio-fundador e editor da Ipêamarelo/Tabebuia. As crônicas de Braga e Sabino, as narrativas curtas de Poe, Machado e Kafka, a prosa proletária de Luiz Ruffato, a poesia de Sylvia Plath e as histórias de Dona Izaltina dizem um pouco de sua escrita.