O AXIOMA DO DESERTO NA POÉTICA DE EUGÊNIO RAMOS GIANETTI – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


 

não era sonho o dia que a praça reluziu entre os buracos dos panos. a desordem da pele. a gordura na roupa e os excessos. o tecido escorado no chão. dentro da linguagem a violência impera. ao contornar os socos recebidos de quem passa na rua, o poema vigora escrito pelo estômago. a fuligem nos olhos dos que se aproximam faz nascer uma rota de fuga para a metástase. o sol na cara. o aceno para o deserto nas letras. na história. na linha tênue entre o poeta e o poema, eugênio gianetti escreve:

sarcoma rubicundo
o sol dolorindo o mundo
furibundo sarcoma
o deserto como axioma
olharemos quando alguém
estender a mão entontecido
olharemos para onde vai o ônibus
e de onde vem o trem
veremos quando a sombra embolorada da tragédia
poderá nos abater a todos nós
e no início da manhã
nojo da própria bosta
em alguma praça mal afamada
tiremos nossos sapatos e ajoelhemos
no silêncio macio da relva orvalhada
depois cortemos as cãs ensebadas das palavras
depois sentemos num banco de madeira
e esperemos algum passarinho extraviado
pousar num raio de sol
tão inútil como sentir

a linhagem da pele curtida se inicia com a premissa irrefutável da solidão. o deserto como axioma redige o território no qual o encontro é sozinho e vermelho. cresce o câncer de cujo sol reage com furor, em que palavras chocadas eclodem na dor que se faz vitrine de mundo. desertar é também acolher o deserto como verbo. seguir adiante com o planejamento do abandono onde o espaço se torna imensidão para todo lugar em que se aponta o dedo.

estamos atentos para quando alguém / estender a mão entontecidamente. o olhar que segue o rastro fodido de boas intenções ressoa como post dos que se autonomeiam dadivosos ao encenarem a selfie de um abraço. quiçá terrário onde se camufla a falsidade dos semáforos defeituosos. enquanto se decide se o trânsito fecha ou se é recuperada a estreia dos vícios, ficamos dedicados aos ônibus – seus destinos e ficções. fazemos sinal no meio da rota em que desponta o trem descarrilado da autossuficiência de um dia de verão. fugimos da sombra embolorada da tragédia, numa debandada digna de catarses, antes que sobre nós se abata a catástrofe coletiva dos sujeitos.

chegada a manhã, sempre o mesmo ritual. a praça é o santuário para o refúgio do silêncio. de cócoras, as orações diárias e o nojo das próprias bostas. as bênçãos são recebidas no macio da relva orvalhada. é necessário tirar os sapatos e manter os joelhos alinhados para a comunhão com o abandono. após o despacho de tudo que é fome, o desfecho com o que há de oblíquo e lustroso. cortemos as cãs ensebadas das palavras como se fossem dogmas necessários à confissão. criemos uma ode à sintaxe e à velhice. a salvação está no triunfo sobre a afamada compulsão ou no descaso dos que recebem os relatos.

por fim, o descanso. a espera. a madeira transformada em banco. o cinismo rarefeito dos danos onde a ironia se torna o relevo de horas futuras. na demora vige o estado mais loquaz do silêncio. outrora a dureza fria da solidão. o conforto do voo extraviado de um passarinho qualquer soa tão desgarrado quanto a imagem do espelho, cujo reflexo deforma a metáfora do pouso seguro num raio de sol. esse modo de olhar adiante reinaugura o futuro da vida. só o antes é possível. ou tão imprestável quanto o filete inútil do sol nesse resquício de memória. tanto faz se é dia ou noite, não faz diferença.

p.s. o que a gente precisa ler num poeta, numa poeta, é a sua poesia. a vida fácil ou difícil, os perrengues ou glamoures, são válidos apenas quando rearranjados de maneira que se tornem parte estrutural do poema. é bom quando se desintegram os andaimes ou, se intencional, quando brilham com vigor. eugênio ramos gianetti foi morador de rua e vive atualmente num abrigo para idosos, segundo matéria do Splash (UOL) do dia 08 de janeiro de 2021.1 o poema acima foi retirado do seu livro Zoobreviver (Patuá, 2018), escrito quando ele passava mais tempo em abrigos, embora fizesse referência aos momentos em que viveu jogado pelas ruas, segundo o próprio autor. no entanto, sua obra é mais. é mais que ruas, mais que calçadas. os paralelepípedos arrojados dos versos tramitam pela longevidade de uma voz que determina um além-espaço. sua poesia fala com sotaque peculiar. eugênio diz a rua, não há como não dizer, mas não se restringe a um elaborado descritivo, apesar da crueza evidente. o complexo organismo sócio-poético de sua dicção extrapola a narrativa simplória. trata-se de um dizer singular dentro do tamanho sem muros de sua história, do desbravamento real das realidades pactuantes com ordinário, desdobrando-se no extraordinário do poético.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.

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