MORRER É UMA ARTE – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


 

Sylvia Plath no poema Lady Lazarus escreve “As a seashell/They had to call and call/And pick the worms off me like sticky pearls”. Gosto muito da tradução de Rodrigo Garcia Lopes para esses versos: “Como uma concha do mar/Tiveram que chamar e chamar/E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas”, sobretudo quando “sticky” se torna “grudentas” em português, o que nos aproxima do título do romance de Anderson Bernardes, Não arranquem os vermes de mim (Oito e Meio, 2019).

O título é uma explícita referência ao poema e revela também o repertório do autor, bastante variado, que abrange desde Sylvia Plath a Machado de Assis, passando por Pablo Neruda e até pelo seriado Jaspion, como o próprio escritor escreve no final do livro. Ao mesmo tempo, Anderson Bernardes evidencia um estilo próprio, já maduro em seu romance de estreia, que, não por acaso, ficou entre os finalistas do Prêmio Sesc de Literatura.  

Anderson Bernardes mostra-se um escritor experiente principalmente ao brincar com a metalinguagem. Não arranquem os vermes de mim é na verdade o título de um romance autobiográfico recebido por uma pequena editora, que, decidida a publicá-lo, descobre que a autora está morta. O romance narra sua história, desde quando seus pais ainda não se conheciam (o que descortina assuntos familiares narrados por gerações) até suas últimas horas. Um tempo dividido entre antes e depois da “noite mais escura”.

Interessante como o autor consegue com primor definir as diferentes vozes narrativas. O narrador do prólogo e do epílogo, dono da pequena editora, é singularizado por uma linguagem mais seca, com poucos adjetivos. Já a narradora do romance lança mão de uma linguagem rebuscada, bastante poética. Ambos são verossímeis e se distanciam do autor.

Ao mesmo tempo, o livro, tanto pela voz da autora quanto pela voz do editor, prende-nos do início ao fim. “Somos autores e testemunhas de todos os nossos crimes”, afirma a narradora. Afirma-o também o leitor, que, da primeira à última página, dá as mãos às personagens do romance, se apaixona na igreja, perde a voz nos bingos, odeia e ama Dois Rios, cidade fictícia de Santa Catarina (segundo o livro, localizada no Alto Vale do Itajaí) onde se passa a história. É também autor e testemunha de Não arranquem os vermes de mim.

Encontramos na escrita de Anderson Bernardes verdadeiras pérolas, como a tristeza muda do pai ou a ideia fixa da amiga de ir ao Japão ou mesmo a volúpia da narradora nos bingos, quando nos damos conta de que ler e escrever é também morrer várias vezes.

E nos pegamos, nós mesmos, recitando os versos de Sylvia Plath: “Como uma concha do mar/Tiveram que chamar e chamar/E tirar os vermes de mim/como pérolas grudentas/Morrer é uma arte, como tudo o mais”.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.