ESCUTA, ZÉ NINGUÉM – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


Neste palimpsesto, quero mostrar um trecho do romance que estou escrevendo. Para não fugir da temática da coluna, escolhi um trecho em que o livro de Wilhelm Reich é protagonista da história. A ideia surgiu de algo que aconteceu de verdade com uma amiga, quando ela me emprestou um livro de Javier Marias, e uma anotação dela em certa passagem me chamou mais atenção do que o livro (que é maravilhoso, como todos os livros de Javier Marias, diga-se).

“Mais de 2000%. Quanto a inflação havia alcançado naquele ano. O que ganhávamos guardávamos. As formigas no inverno, sem provisão suficiente. De tarde pagávamos o preço por não termos nos abastecido de manhã. Os preços mudavam na medida da sorte. Durante as fugas da Halley acabei por me aproximar do vizinho, quem me ensinou o papel da cigarra naquele inverno. Havia-o visto algumas vezes, mas meu interesse atinha-me ao papagaio. Quando olhamos para um lado e o resto do mundo vira a cabeça para o outro.

Alto, da minha vista, mais alto do que baixo. Andava de calça jeans e camiseta. Quando sorria, algo corrente, espremia a vista, a me imaginar desfocada, todos desfocados no sorriso do vizinho. Nós desfocados em frente àquele ipê, céu e chão da nossa rua. Éramos, ao fim e ao cabo, uma mancha roxa para o vizinho. Penso se ele também não tenha sido uma mancha roxa para mim por um tempo, quando brincava com o papagaio ou corria atrás da Halley.

Da primeira vez que conversei com ele, não prestei muita atenção no que dizia, mas no que carregava. O mesmo livro que meu tio havia me emprestado algum tempo antes. Escuta, Zé Ninguém, de Reich. Apontei a capa.

“Tio Arthur tem um igual.”

Ele espremeu os olhos. Distorceu a vista. Não seríamos nós o ponto de fuga? Uma conversa é também um arremedo de imprecisões. Uma imagem borrada de algo que se diz. Decerto sorrir fosse também parte da conversa com o vizinho. A procura na vista daquilo que ouve. A busca no encontro de duas paralelas por qualquer sentido.

“Renato Russo tem uma frase massa pra isso.”

Pensei no papagaio, olhei para o alto. Renato Russo falava palavrões. Filho da puto, a frase massa que imaginei.

“Às vezes parecia que era só improvisar e o mundo então seria um livro aberto”, a frase massa a que o vizinho se referia.

Não explicou mais da frase, nem do autor. Menos ainda do nome do papagaio.

Continuamos parados em frente ao ipê.

Até que me perguntou se não queria entrar para ouvir Renato Russo. Concordei com a cabeça. Mal não havia, o vizinho não era estranho. Titio o conhecia. Também eu já conhecia a casa. Quando conversávamos com o papagaio. O Renato que ouvimos dessa vez, contudo, soava da vitrola na sala. O vizinho surgiu da cozinha com bolachas e vitamina de banana.

“Alex Lipp que me apresentou Wilhelm Reich. Já faz tanto tempo. Tinha acabado de conhecer Alex. A gente nunca sabe quando um encontro pode mudar nossa vida. Ter conhecido Alex naquele dia mudou a minha. Não sabia nada de nada. Ele conhecia o mundo. Já tinha lido tudo. Era amigo de minha mãe. Ficou em casa por um tempo. Ele sempre me falava de Wilhelm Reich. Quando vi seu tio com o livro, pensei na coincidência e se havia hora certa pras coisas, disse que fazia tempo que procurava por aquele livro. Então ele me deu um dos dois livros iguais que tinha em casa. Não entendi por que seu tio tinha dois livros iguaizinhos em casa, mas aceitei o presente.”

“Quem é esse Alex?”

“Gosto muito do livro. Mas de tudo, tudo que o que vi lá e que me fez lembrar de Alex e de mim mesmo, posso dizer que o que mais me chamou atenção foi uma observação de seu tio à margem de um parágrafo.” Meu vizinho ignorou completamente minha pergunta. Pegou o livro jogado na mesa ao lado dos biscoitos e da vitamina de banana, folheou algumas páginas. “Aqui está. Bem aqui. Consegue ler, menina?”

O parágrafo em questão era o seguinte: “Por muitos anos, estive em contato íntimo com você, porque conhecia a sua vida através da minha e queria ajudá-lo. Permaneci em contato com você porque vi que de fato o estava ajudando e que você aceitava minha ajuda de bom grado, muitas vezes com lágrimas nos olhos. Só paulatinamente cheguei a ver que você é capaz de aceitar ajuda, mas não de defendê-la. Eu a defendi e lutei muito por você, no seu lugar. Então seus líderes vieram e demoliram minha obra. Você os acompanhou sem um murmúrio. Depois disso mantive-me em contato com você na esperança de encontrar um meio de ajudá-lo sem ser destruído por você, fosse como seu líder, fosse como sua vítima. O zéninguém em mim queria conquistá-lo, ‘salvá-lo’, ser encarado com o assombro que você sente pela ‘matemática avançada’ porque não faz a menor ideia do que ela seja. Quanto menos você compreende, maior seu assombro. Você conhece Hitler melhor do que Nietzsche, Napoleão melhor do que Pestalozzi. Um rei significa mais para você do que Sigmund Freud. O zé-ninguém em mim aspira a conquistá-lo, como você é geralmente conquistado, pelos tambores dos líderes. Tenho medo de você quando o zé-ninguém em mim sonha ‘conduzi-lo à liberdade’. É que você poderia descobrir a si mesmo em mim e a mim em você, assustar-se e se assassinar em mim. Por essa razão não estou mais disposto a morrer pela sua liberdade de ser escravo indiscriminado.”

Exatamente na linha em que estava escrito “um rei significa mais para você do que Sigmund Freud”, havia uma seta traçada várias vezes, parecia que a caneta estava sem tinta, e, ao final desta, uma palavra também escrita à caneta: família. Família, nada do que certamente o livro e tampouco meu tio pregava. Por que teria escrito aquilo, e, ainda, teria entregue justamente o livro com aquela anotação para um vizinho que mal conhecia? Lembrei do livro, de quando meu tio me emprestara, não havia lido nenhuma anotação como aquela, no máximo uma citação a lápis, bem fraca, nas últimas páginas. “Caneta é difícil de ser apagada. Acho que de alguma maneira seu tio quisesse que eu lesse essa observação”, o que disse meu vizinho.

Ficamos os dois por um tempo com a vista à mancha borrada à caneta em que se lia “família”. Tinha uma letra feia meu tio, como a minha. Até nisso somos parecidos. O a inclinado à direita, quase um e. A perna do f igual à metade de um losango. Demorei a aprender aquela forma puxar o efe. “Quando Alex veio morar com a gente, éramos somente eu e a mãe. Alex era um pouco mais velho que eu. Ninguém ainda tinha notícia do pai. A mãe disse que o amigo precisava ficar com a gente por um tempo. No começo não gostei, mas depois me acostumei com aquele cheiro de cigarro de corda no quarto. Fui me acostumando. Entendendo que família é costume, como o cheiro de corda no quarto que depois vira o cheiro do quarto. O sentido de família veio de uma pessoa de fora, que me ensinou um pouco de tudo, que me chamou de zé-ninguém um dia e que todas as noites lia um pedaço do livro comigo e com minha mãe na sala. Não faço ideia por que seu tio escreveu família naquele trecho, mas pra mim faz sentido. Parece que Arthur me conhece mais do que eu pensava. Ele gosta muito de você, não?”

Abanei a cabeça. Meu vizinho nunca havia chamado meu tio pelo nome antes.

Quis saber mais de Alex, mas o vizinho ficou quieto por um tempo.

“Gosta de rock? Vou te mostrar uma coisa.”

Foi ao quarto e voltou com uma guitarra.

“Esta aqui ganhei de Renato, o mesmo que está tocando na vitrola.”

“Uau. Como funciona?”

“Um dia te mostro, menina. Agora está tarde. Seu pai deve estar preocupado.”

Limpei o bigode de leite batido e preparei a voz para a despedida. O vizinho espremeu os olhos. Estendeu a mão e agradeceu. Nunca entendi pelo que agradeceu. Voltaria a visitá-lo nos outros dias, fascinada por aquela guitarra”.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.