DEUS-E-DIABO NO DRUMMOND-EXU DE IGOR FAGUNDES – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


 

nunca pisei num terreiro. mas da incorporação sou habitante. palavra é meu jogo, o balaio onde sempre topo com a pedra no meio do caminho. o centro do mundo todo, de todo mundo, a topada no dedo faz enfrentar qualquer empecilho, o abre-alas fecundo entre a carne e o minério, destino de todos os pés. fui gente nascida e criada até certo tempo no ritmo dogmático das preces, percebi depois que meu templo é o poético. o transe, o trânsito de onde a gente nunca sai, enquanto encruzilhados nas rezas do poema. estou exatamente no mesmo lugar onde sempre estive. de papo com o diabo,1 este que é verbo e parceiro de jogo. a gente conversa a partir da leitura que igor fagundes fez do encontro entre drummond e exu, e fico a girar no eixo de um silêncio gritante, nesse lugar sem nome por onde escrevo.

O adversário (em hebraico, satã) é o entre-tanto, o toda-via com o qual jogamos e no qual somo jogados (dia-ballein, em grego; dia-bolus, em latim): o entre-jogar-se ou o entre-lançar-se do humano na máquina & na mágica do mundo. Em um jogo, o adversário não é o inimigo (o mal), mas aquele que permite o próprio jogar, jogando no campo a questão

as mãos esquentam quando o sal é sentido no suor do poema prestes a nascer. o som das palavras em sintaxe. roda cantante no qual o corpo inteiro estremece à procura do seu estame. pela tessitura do desenho feito no chão, a poeira é encorpada nas frases em coro. as vozes vibram nos diafragmas e alardeiam o nascimento das entidades na dobra entre gesto e fala. a linha tênue entre o dizer e o calar se ilumina ante a parturiência de um novo mundo.

o adversário sou eu. nós. a postos com a identidade prosaica das alteridades ocupadas nos nomes, ficamos endiabrados, assumidos na transiência loquaz do a se dizer. possuídos. empossados da possibilidade do salto. somos todos quedas. não há chão que se limite ao impacto. o céu se repercute em todo lugar de dança. abertas estão as mãos. lançados estamos desde sempre no que não se pode dizer nem chamar.

nesse jogo de passos improvisados, deus é comparsa. deus-e-diabo. nem antes nem depois, acima ou abaixo. é agora o lugar dos tempos. a face de todos os tapas. não há lado. a posição vigora no a se tornar espaço. astuto é o nome do divino. o salto é já, já é, tá ligado? o pacto é sempre.

Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.

no sertão onde todas as veredas são rosas, o botão carrega o simbolismo das cores, das mortes-vidas cabralinas. presságios e passagens. grande é o arco criado pelos poemas falados, lidos, acolhidos nas dúvidas, nascentes nas fugas idílicas dos falsos. dá-se o milagre, coisa sem explicação. é quando poeta e entidade se pertencem e dão as mãos. encruzilhada criada por igor nos laços entre drummond e exu. essa roda dançante em que os corpos se vergam ao sagrado do chão, aos estilhaços do céu na têmpora dos que se enxergam pagãos e pagantes ante o sacrilégio divinatório dos dogmas. mas no trocadilho das pernas, todas as regras se esvaem e a terra acolhe o sacro reencontro dos pés. errantes no desabrochar do poético.

mas deus não deixa barato. sempre à espreita, vem de mansinho na tríade das mais basilares questões do âmbito teológico: onisciência:onipresença:onipotência. é completo no que falta e no que faz encenar pecaminoso. pecar vem da expectativa já anunciada desde seu antes. o pecador é algoz de si próprio. mal sabe ele, ou prefere não saber, que o ternário divino concede de antemão a possibilidade de desvio, porque o extravio é também caminho para o entre da antinomia céu-inferno. milagre é o não visto na experiência do nada, nonada; e rosa – o guimarães –, de novo comparece ao acontecer onde se tece o ser e o nada enquanto criatividade e potência para as possibilidades do real: quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo.

o deus-diabo-divino-em-trejeitos-traiçoeiros ataca bonito no poema de drummond: Meu deus porque me abandonaste / se sabias que eu não era Deus, / se sabias que eu era fraco. mais bonito ainda é perceber que na toante rima entre o abandono e a fraqueza a gente se coloca parceiro nessa trama. quem aqui nunca se tornou o engano de seu próprio feito ao cruzar o espaço entre o gozo e a culpa? encruzilhados estamos na singular maneira de existir para a morte, cujo destino é a falha diária da redenção. o que fica é a poesia, verbo que abre e irradia da raiz à pétala a angústia por nossa condição finita ante o nada em plenitude.

A flor da poesia – a rosa deixada e colhida na encruzilhada – conspira para a super-realização da vida, ou melhor, para a superação da vida em cada vivente-morrente, fosse a transcendência um acontecimento na imanência. Ao conceder à vida mais vida, a poesia provoca um diálogo intenso e profícuo de vida consigo própria, sabendo que nada está fora, ou seja, que a vida dialoga com a morte, e vice-versa.

a vida mais vida está pra lá de longe do chover no molhado. segue o seco na ventura melódica em que se misturam os tons numa ambígua caldeirada de vida-e-vida / morte-e-morte na vidamorte pela semelhança do que nunca pareceu igual. acolhidas estão as flores na calçada, colhidas na encruzilhada do poético. um verso que seja, uma palavra apenas. um corte, que seja apenas rearranjo silábico de morte. nessa permuta ora suporte para o escrito transcendentemente oral se erige o desenho, o signo de nosso apelo para que nunca ninguém se esqueça de que a poesia provoca o diálogo, a poesia é o diálogo, a fala, o gesto, o silêncio do nada que surge no espanto.

já disseram que o espanto deu início à filosofia. o susto primordial quando alguém se encontra com o extraordinário no ordinário. a passagem de um pro outro: ordinário-extraordinário: o poético. o espanto. o filosófico. o momento em que alguém acorda outro no mesmo corpo. na mesma hora em que o tempo deu algumas reviravoltas no cotidiano dos tambores. nada está fora da vida. nada está fora da morte. diabo na esquina à espreita de quem procura pelo pacto. mas digo ao senhor: tudo é pacto. todo caminho da gente é resvaloso. tudo é divino. deus está em todas as coisas. a poesia é o agir das coisas em que tudo está: mágica do mundo.

Exu desvia e reenvia Drummond ao anjo torto, daqueles que vivem na sombra e dizem: “Vai , Carlos! Ser gauche na vida!”

o anjo torto. lúcifer. diabo. demônio (do grego daímon, o extraordinário, a força indomesticável, eros, amor). dizem alguns que todos esses nomes fazem confusão na cabeça de quem vê apenas o visto. prefiro escamotear. a reta que sonha em ser curva nas mãos demiurgas do poeta das pré-coisas. e fica o dito: deus deu a forma. os artistas desformam. é preciso desformar o mundo. nessa dança, os pés entortam com o ritmo dos atabaques nos quadris dos movimentos. pau que nasce torto faz poema fora da bacia.

ps.: este texto não partiu de um poema, e sim de um texto teórico. teoria é o agir do pensar, portanto, um ato, um gesto poético; uma vez que poesia – poíesis – diz a ação criativa do real como destinação humana entre ser e não ser. e daí se desdobram os sentidos de linguagem, phýsis, éthos, entre outros entranhamentos. igor fagundes em sua cuidadosa trama poética ergueu estradas, viadutos, encruzilhadas com seu ensaio “A poesia entre os dentes”, que me serviu de aleluia para este amém lido agora por você. no referido ensaio, publicado em Macumbança (Penalux, 2020) – livro mais recente do citado autor –, drummond e exu fizeram ciranda na arquitetura pensativa do poeta-professor. e eu, que não sou bobo, pra não ficar de fora da roda, vim munido de veredas, compartilhando uns dizeres de guimarães rosa (o primeiro a me ensinar sobre pactos e encruzilhadas), a partir do seu Grande sertão  e do conto “O espelho”. trouxe ainda no finzinho um cheiro de manoel de barros, sempre presente em mim. aí, pronto, o chão chegou a tremer na festança da poesia pelos olhos desses imensos seres. e mais, para além dos outros textos presentes em Macumbança , é uma belezura o modo como igor transita, faz e desfaz caminhos, dada a profundidade sabiamente questionante de sua leitura, de sua escrita, do diálogo que propõe sempre a partir do poético, na ampla dimensão sagrada que a poesia exige. um livro necessário. e este meu texto é apenas um brevíssimo recorte. um buraquinho de agulha ante a imensa tessitura para a qual o livro do igor nos convida.

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1 do grego dia-ballein, diabo significa ser lançado no entre, habitar o trânsito, viger na mobilidade, força mediadora, o parceiro de jogo quando o eu, o próprio, está na tensão tempo-espacial com o que se determina por essa egoidade.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.

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(Imagem: Jackson Pollock)