coluna | palavra : alucinógeno
continuava a conversa de outro dia. falava da ruína coloquial que se espera de uma dramaturgia personativa, focada num só ente. dizia que era preciso ter um personagem coletivo. e há. pedro naves é seu nome. no fundo do oceano, os animais invisíveis tramam contra a beleza do que se propõe como verdade visível: nascer e morrer numa pujança copartícipe da alvenaria verbal do romance. havia muita poesia nele, no pedro. no romance também. onde há poesia ainda não é poesia, conforme diz o poema de augusto de campos. ele não é naves, mas poderia. ali onde há um personagem ainda não é um personagem. ali onde há um romance ainda não é um romance. o ainda é uma potência temporal. radicaliza a travessia na cobrança da morte que a terra faz quando um naves nasce. é preciso matar um bicho, dos mais ariscos, e o animal deve perceber.
uma celebração da linguagem. do corpo. da palavra. da palavra como corpo. da imagem pela voz de um ente com muitos sujeitos. não se trata de subjetividade apenas. corremos o risco da devastação infinitesimal pela conjuntura dos nomes. pedro naves é um aceno para o que não é, para o propósito indigente dos solilóquios, afinado com a não serventia da arte, da poesia, da palavra. servir é ter prazo de validade. palavra não é exequível, ela é dançante. algo assim:
Recriei minha compreensão da palavra e da imagem. Corpo: palavra. Imagem: pés nus que dançam sobre a terra. Trança: palavra. Olhos que foram embora e ficaram em mim: imagem. Corpo-imagem, imagem-corpo
na paisagem em que vida e morte retroagem ao princípio das horas geminadas, o corpo se faz vigente na aprendizagem das metáforas. pulsa a dinâmica verbal do sangue e vai à excitação inicial de quando se desenha na pele o gesto inalcançável da língua. anahí é o nome dessa experiência primal. a personagem indígena traz profundidades no corpo e se torna salto na vertigem de pedro naves. corpo e palavra não apenas traduzem um acontecimento poético na disputa das equações, também realizam a ambiguidade necessária à composição da imagem na mútua recriação do ritmo narrativo.
dançar sobre a terra com pés nus recobra a itinerância do que se é como perdição. retomar os desvios para si rejuvenesce a andança pelos caminhos da linguagem. a partir dela se estruturam peripécias entre imagens e sintaxes. as falas comungam do mesmo instante, é agora e depois na retaliação contra a ingenuidade duma linha temporal antinômica. trazer a terra para os pés é um reconhecimento ancestral de muitos atuais passados, aquilo que fica quando se vai, tal como o poema de caeiro: Ide, ide, de mim! / Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. // Passo e fico, como o Universo.
a translucidação corpo-imagem / imagem-corpo reitera aquilo que permanece no fluxo das mudanças. o universo se somatiza no exercício de ser passagem e pouso num gole só. a retenção do que esvai – como herança narrativa de uma estrofe sem fechadura – arranja a harmonia parturiente da semântica. pedro naves como um incesto de si próprio regula o imprevisto enquanto previsibilidade das alternâncias temporais. realidade jamais poderá ser uma linha reta, apesar do patrimônio cronológico que nos coube na tripartição grega do tempo mítico, no âmbito ocidental do corpo:
Também somos paridos por meio da frase, da palavra que se fala e da que se cala, da palavra que se manda calar, do significado a impor limite à pele sintática […].
pedro se embrutece verbalmente e provoca a arritmia de quem o lê pelas distâncias mais próximas. como se ali na página fosse firmado um pacto na encruzilhada dos diálogos. nessa tensão, somos sim paridos por meio e também no meio da frase. a escrita deseja o corpo de cada letra, e nessa invenção é traduzida a vontade de se ir de vez para a nomenclatura das fábulas proibidas. numa transição fotogênica em que narrar é narrar-se (de algum modo, de algum jeito, nem que pelo risco da onisciência), elabora-se o registro incisivo entre falar e calar. a parturiência vige nesse entre. nascer é tal como um meio do caminho bem marcado, cujo destino, certo, é morrer. contudo, é bom perceber que um recobra o outro: vive-se na morredura da nascividade. morre-se na constância dos instantes vividos. e assim ficamos na iminência de nascer pela narrativa e de romper (ou se aprofundar) no limite da pele sintática, quando limite não seria apenas o que impõe parada, mas também aquilo que costura a tensão entre, no mínimo, duas possibilidades. dá até para dizer que impor limite à pele sintática soa como uma ordenação caótica que recobre os eixos da malemolência linguística no sintagma do corpo.
nada que existe, aliás, pode ser escrito, quando é escrito não é, apesar de parecer
num reverso de realidade em que os opostos são visíveis e críveis, fica na encolha o fato em si. no entanto, só há fato em si pela perspectiva da própria coisa. pela visão do interlocutor, pela leitura do leitor, o que existe é ficção, por figurar a realidade sem representá-la. nessa demanda, pedro naves se manteve atento à conversa com justina, por ela viver um tipo de desajuste repressivo, corporal. ela seria algo como o reverso da aparência. nisso, pedro acolhe o antro das copertenças linguísticas, pelas quais já não se sabe mais a diferença entre letras e fonemas, apenas a certeira ocasião dessa dúvida. para nós, do lado de cá, a realidade é desencadeada. é presente.
escrever não pode. a escrita retém a falha do real, uma vez que registra apenas um momento, o que aparece, aquilo que é: isto que se mostra no que é oculta o não ser dos entes. impossível é ter com a completude da realidade, porque esta é uma aparência do real, um instante apenas. o que existe, pensamos, está para além do dado. extrapola na própria palavra o que vai para fora (ex-) da estância, do permanente (-istir).1 ficamos no colapso do parecer, quando naves escuta de justina: “olhe ao redor e veja, muitas coisas neste lugar parecem e não são, se você colocar no papel o que parece estará duas vezes mais longe da realidade”. platão se comove para além de qualquer platonismo.
o verbal coletivo de pedro naves é uma tentação. a luxúria gramatical fica sisuda, tesuda que é desde tantos arcabouços. a teoria vem na lida das proposições, mas são trincadas no exercício de incorporação entre palavra e leitor. literatura como manifestação de realidade e não representatividade. é bater e valer. a gente acorda meio tonto depois dessa de transgredir a ideia de sujeito. falar mal da subjetividade não pode nunca jamais. o eu-lírico só é vencedor quando fica com as batatas. estamos à mercê da fuga, quando encontramos nos desvios as melhores surpresas – já dizia o poema de manoel de barros. pois então, mais vale a transfiguração:
Eu é uma tentativa, meu caro… Eu é tentativa fraca, melodia de fuga que dura em média oitenta anos
numa metaforização poética do araguaia, da guerrilha. melhor, num desdobramento identitário que assume a guerrilha como história. melhor. na multiplicidade espaço-tempo-cisão, cuja subjetividade se amplia para os diversos modos de ser, cogitar o eu é aqui a assunção da coletividade de muitos tantos pedros. que fossem 69, todos os soldados, ou mais, ou menos. não é o em-si que conta apenas, mas a dobradura, a investida. o eu é uma tentativa. o experimento de quem empunha o fundo do oceano e trava com os animais invisíveis o beco sem saída. a fuga como contraponto das vozes, das pedradas. oitenta anos em média para ficcionalização poética do sujeito, cuja narradora é a linguagem. é música.
na transmutação das vozes pelo acontecimento do sujeito cindido, a questão do tempo se coloca fundamentalmente. não há linha reta, já sabemos. não é só cronos, temos que considerar também aion e kairós. todos juntos, bem intrincados, e isso se levarmos em conta os gregos. ao sairmos da perspectiva ocidental, a coisa se intensifica. os povos andinos, por exemplo, enxergam o passado à frente, enquanto o futuro está para trás. o passado chegaria pelo conhecimento dos antepassados, portanto, está à frente por ser visível. então, o que se vê adiante já se revelou em algum momento para quem teve determinada experiência com o real. por sua vez, o futuro está atrás, é o inacessível por não poder ser visto. mesmo assim, acatando isso tudo, temos de pensar que o passado à frente dos antepassados se torna uma experiência singular e inaugural, porque o que há é presente. o passado não se revive. pedro naves faz essa provocação. ele convoca para dentro de seu redemoinho a transitividade plena de travessias:
É sempre o passado que vemos, nunca o futuro, veja bem, o futuro está atrás de nós, ao olhar para frente só podemos ver o rastro, o vivido, o vivendo, […], os bebês que nascem não pertencem ao que vem, mas ao antes.
o vivido. a palavra é uma imagem vivida. a linguagem possibilita a convergência das instâncias palavral-imagética na unidade heraclítica do silêncio. um corpo que podemos arriscar dizer ser linguagem, ou também ser. preso e agigantado a partir do ruído do caneco nas grades, pedro dá o recado acima. o que vemos é o passado, nunca o futuro. funciona como artimanha provocadora de ruínas, de modo que os limites se põem fortes como impulso de reunião e unidade numa recomposição contínua. o tempo é agora. é breve e longo, simultaneamente. do fundo do copo d’água, passado e futuro compareceram como presença. a memória. o que é e o que será. o que foi. o pertencimento é do antes. o nascer está no morrer. o morrer, no nascer. o vivendo.
p.s. a partir do livro No fundo do oceano, os animais invisíveis (Reformatório, 2020), de anita deak, fiquei muito tentado a fazer este recorte. ouvir o quanto pudesse da voz múltipla de pedro naves (dentro dos limites deste texto, obviamente). de certa forma, já o conhecia um pouco dos comentários da autora em seu podcast Litterae, apresentado por ela e paulo salvetti. muito me interessa pensar a linguagem, as palavras, a imagem, e sempre pela experiência do poético que, claro, não se restringe a um gênero. prefiro dar atenção à sua dinâmica originariamente verbal, em diálogo com a movimentação cíclica do real em realidades. no epílogo do romance, anita menciona quem é pedro naves, mas não vou dar spoiler. o que posso dizer está dito, na tentativa de entrar na roda desse diálogo dançante e ser mais um braço, uma palavra, no corpo da linguagem.
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1 existir vem do latim eksistere, de onde podemos escutar duas movimentações na composição de seu sentido: ek- > ex- = para fora; -sistere > -istir = estar, permanecer.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa e na própria Vício Velho.