PEQUENAS CÓLERAS DE O. – GRAZIELA BRUM

Coluna | Palimpsesto


Queria encontrar o caminho de volta, mas meus pensamentos confusos não me conduziam a lugar reconhecido, talvez por causa da bruma que me envolvia e turvava os sentidos. Lutei por horas, entrava e saía por labirintos desconhecidos, já abatida pela minha incapacidade de entender o que acontecia. Era tristeza, muita tristeza, disso eu sabia. Tristeza por morrer de forma tão banal, tão imprevisível, tão inconsequente. Tristeza por tomar uma atitude drástica, mas necessária, sem saber o que esperar à frente. Na verdade, eu não esperava nada, porque não tinha nenhum plano diferente daqueles do passado. E que planos bons eu tinha. Construídos aos poucos em noites e noites de planejamentos, de conversas infindáveis em acordos indissolúveis; de encaixes matemáticos, em coincidências assustadoras com o destino.

Mas o fio que nos carregava para nossas vidinhas perfeitas se rompeu, não sei explicar. Acho que em toda a perfeição tem uma falta terrível, um abismo perigoso que nos sonda pela verdade. Quis a verdade, sem supor que verdade e realidade são universos diferentes, unidos por linhas absolutamente tênues ou mesmo contraditórias. Foi assim, num malabarismo sem rede de proteção que tomei uma rasteira nas pernas, caí na mesma hora. O chão duro, frio, sujo. Meu Deus, pensei, para que a tal verdade se não posso agora suportá-la? Se não consigo nem ao menos me mover da queda, os músculos paralisados não me deixam impulsionar o corpo. Corpo estirado, corpo nu, no meio da sala do apartamento na Vila Mariana.

Pensei em gritar, gritar por socorro, bem alto, mas quem iria me escutar na cidade das buzinas, na cidade em que todos gritam e pedem socorro. Mais um grito sem resposta, de uma garganta exaurida de forças. Tão perto do limite, bem provável que um único grito me levasse ao colapso. Era preciso aguentar a morte, esperar brotar de alguma parte do meu corpo o germe da renovação. Coisa parecida com a raiz que surge de um galho de planta que se tem por perdido, mas que se enfia na terra para ver o que vai dar. Cedo ou tarde, a natureza dá conta.

Aguardei, e a minha sorte foi encontrar uma formiga perdida por ali. Segui a observá-la, as patas articuladas caminhavam na minha direção, e ela chegava perto dos meus cabelos emaranhados, espalhados ao redor da cabeça. Se, por acaso, a formiga entrasse naquele labirinto, talvez nunca mais fosse encontrada. Ela se perderia como eu me perdi. Procurei outras formigas pela volta, sempre as vejo em bando, mas que nada, aquela formiga andava sozinha. Devia sofrer de tristeza calada, por saber que a tristeza mais nefasta é aquela lançada aos ventos, aquela abafada pelos som dos carros de São Paulo. Aquela tristeza disfarçada que aproveita o subterfúgio dos prazeres humanos para se alojar por de baixo da camada superficial e nunca realmente deixar o corpo. A formiga não me deixava em paz, bem maior que eu, bem mais corajosa, bem mais inteligente, não se intimidou com o meu corpo abandonado na sala. A formiga veio sem desviar-se, sem distrair-se, sem delatar-me a ninguém. Veio em silêncio. Então, a raiva se levantou em mim contra aquela formiga, justo por ser o único sentimento que ainda me sobrava. Quis esmagá-la. A minha verdade agora era o ódio que nutria pela imensa formiga. Todo o meu ódio estava ali, mas, mesmo assim, não sei se aquela descoberta de raiva concentrava forças suficientes para me remover da inércia. E se eu me levantasse para destruí-la, eu tomaria o próximo passo imbuída de raiva e definiria o tom da liberdade. É possível ser livre tomada de ódio?

Pode ser que a tristeza nunca me abandone, justo por escolher a raiva como primeiro sentimento de reação. Talvez toda aquela angústia que me levara nua ao chão da sala não fosse capaz de modificar nada dentro de mim, em nenhum canto do meu ser; continuaria essa mulher iludida presa no espaço entre a realidade e a verdade, sem suspeitar as diferenças de coisas que se parecem tanto, mas que são tão diversas. Quem sabe, no meu futuro, venha a me deparar com os mesmos obstáculos de agora, e ainda sem maturidade, sem discernimento, encontre-me nas mesmas condições, nua no chão de algum apartamento de São Paulo. Deixei a formiga se aproximar, encarei o seu trajeto. Ela que fizesse suas escolhas, eu nada faria. Não tomaria nenhuma atitude a não ser continuar exatamente onde estava, e esperar a coisa potente, a fagulha de força que precipitasse em mim a reação necessária para sair dali. A formiga vinha e eu me concentrei naquele encontro, tanto, que talvez nessa espera, tenha dormido, sei que, momentos depois, já não via mais a formiga. Vasculhei ao redor e por fim me dei conta que a formiga havia se dissuadido. Ela também tinha ido embora, havia tomado outro rumo e foi assim que desejei a formiga de volta, mesmo que fosse para levar ferroadas do animal, queria a formiga. Mas é verdade, nada havia me feito, era preciso admitir a sua inocência; e mesmo se tivesse me mordido todo o corpo, ainda assim, não me causaria dor maior que aquela por mim sentida. A dor provocada pela formiga jamais abafaria a outra dor. Então, para que lastimar seu sumiço. Aquela formiga não poderia fazer nada contra uma mulher já morta.

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Graziela Brum
 idealizou e coordena o Projeto Literário Senhoras Obscenas. Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia -, também publicou Vejo Girassóis em Você (Lumme), de prosa poética.