O CORAÇÃO FODIDO A MIL DE HEYK PIMENTA – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


 

essas coisas simples que a gente vive. as tias, o pai de moto, as crianças crescendo. a praça nunca fica para trás, é ela que aparece quando a alegria vem como bombril pegando fogo no giro. o dispositivo é à manivela porque assim dá para sentir a força dos músculos na hora da moagem de tudo que é importante provar no cheiro e no fundo do estômago. com o coração fodido de heyk pimenta, a gente aprende que é possível fazer um moedor de café no peito.

peça fixa e manivela:

A peça fixa dá forma ao objeto. É tripartite. De cima para baixo: funil, estômago e mão, e se prende atrás de uma porta azul de madeira na cozinha de uma casa de amianto, sem laje, que um dia foi uma granja e custou um fusca branco 1977. A peça móvel é uma manivela de sentido horário, sua extremidade interna é uma engrenagem bojuda que se aloja no estômago da peça fixa.

é pelo cheiro que as coisas acontecem. ou começam a acontecer. você está ali, vivendo sua vida. os dias lá fora e aqui dentro esse tempo sem demora. a casa te habitando. a memória plena no pós e antesmente, mas não se trata apenas de lembranças. a coisa toda é um lance de atropelo mesmo. cair de bunda de repente. uma façanha de realidade que vigora desde antes de se ter noção prática dos entendimentos. para dizer bonito, a gente fala em desencadeamento. uma ideia dentro da outra sem por onde nem por quando. mais ainda, esse presente que é nada, o que ao mesmo tempo deixa de ser e vem a ser. a enxurrada de vidas vividas que nos torna tal e qual uma máquina rudimentar constituída de uma peça fixa e outra móvel.

pela corporeidade entre funil, estômago e mão, o ponto único da viragem é onde se está bem calçado. estar amparado é também ser mudança, e é no peito que a reviravolta se dá. a moagem elabora uma metamorfose. para dentro do estômago rumam os apetrechos do que se poderia chamar lembrança – pequenos universos ressecados ao sol. do seu tempo de acontecimento ao agora da recobrança é uma questão de metástase (metástasis), mudança de lugar, mas sem perder a referência. por isso memória, mais que apenas lembrar de algo, é também uma instância do inventar; e inventar, dentro dessa lógica pr’além do exequível, diz a anunciação do que vige como inauguração constante.

é pela metafísica dos elementos tão de antes e tão de agora que se percebe como um recobra o outro. ser o elo de reunião entre uma peça fixa e outra móvel dá muito pano pra manga. dá a pista de que importante mesmo é ser engrenagem, porque depois de enchido o funil com café de torra vermelha, é ela com seu ruído que se encarregará de despertar os demais da casa. esse tanto de gente sou eu também. se tudo vem pelo cheiro e rodopia o coração num mecanismo circular de força, o tempo vem total pela centelha dos versos – radicais na vida da memória. nessa percepção, a gente se reúne e volta. e vai também.

[…]
sinto isso agora
com a cara escondida no seu esterno
ou com minha orelha contra sua pele
que segura logo atrás dos ossos
um coração fodido
mas mais antigo
e inteiro
do que quase
todo coração

coração é feito pra ser fodido junto. não tem a menor graça, nem existe – se muito bem pensar – um coração que reaja sozinho. não é de agora, e sim de muito antes, coisa antiga mesmo, esse bater atrás dos ossos. seu ritmo é do quase, como só poderia ser. nada que seja junto é tido como inteiro sozinho. é por um triz, tem que ser, porque precisa do outro. ser completo pela metade, só que mais antigo e inteiro é esse lance. uma tragédia criada para colorir disfarces onde o ritmo cardíaco das partes se emoldura como o quadro na parede que a gente olha a fim de ir bem longe.

se rambo fosse chuck norris, eu nem estaria aqui para contar o desfecho dessa festa. a faca de manteiga já teria virado artilharia na mão que pede solução para a temperatura exata do café. ferver a água não pode. é importante esse detalhe. pelo folclore dos coretos, a margem da verdade se estica para fora dos ditames convencionais. os poemas vêm com cheiro, cor. tão vivos que pulsam na gente um tempo muito nosso, tipo segredo que nem em confessionário se conta. por isso não sou católico, ainda bem. o drama da cesura vem no pretexto do dilema. dizer sem contar como se diz. assim a coisa anda que só, no seu mesmo lugar, e a gente acompanha, sentindo ranger a manivela no moer dos grãos, na pele.

é uma necessidade de fôlego também. porque recuperar o corpo sufocado é mais difícil. batem juntos os corações perdidos da pulsação combinada. bate forte quando a gente lembra, o pai saindo enquanto eu chorava olhando a moto / fazer a curva depois do terreiro. imagem que traz de volta os dias que não ficam porque já foram e vão sendo. memória que revigora o tempo do tempo, esse eterno agora. resta pegar as crianças e celebrar com elas. vida que se vive sem retorno. um desafio e tanto. feliz do dia em que um poema faz encanto e confunde o quando nesse instante de outras horas.

[…]
esses apartamentos estão todos
ocupados e não mora ninguém
que acenda as luzes que fume
a vista que more neles
o coração a mil
[…]

a gente compartilha a vida quando reza. compartilha a reza com quem abre a janela de repente e avista do lado de cá um coração a mil. o olhar para longe de certa forma traz o distante cá para perto. nessa linha traçada pela visão não há equívocos ou perseguições. é olho e destino. ao aportar o peso do corpo no batente enquanto o cigarro queima, a gente prende o tempo àquele instante e fica na torcida para que alguma luz acenda, para que algum vizinho também traga para os pulmões a vista que neles mora. não é preciso desparafusar o moedor de café da parede para demolir a casa. a gente acumula as ruínas dos lugares por onde passamos. as praças, as ruas, as mudanças, as pessoas, o apartamento: escombros cultivados para o nascimento de outros.

é um cigarro atrás do outro na área de serviço. a memória – que mistura lembranças e desencadeamentos de realidade, provocações semeadas na gente – vem dizendo no corpo essas preces. a gente até faz pose para recebê-las, ouve com precisão a velocidade com que tudo acontece e nem dá conta, às vezes. tava precisando / procurar alguém umas janelas acima. descobrir sabe-se lá o quê. mas o que se encontra não interessa tanto, o que vale é a procura. para demolir a casa não é preciso desparafusar o moedor de café da parede. e o coração, fodido. o coração a mil.

p.s. heyk pimenta publicou coração fodido pela caiponte, editora do marcelo labes, em 2021. quando terminei de lê-lo, ficou forte a sensação de coisa antiga, mas bem presente, uns cheiros e texturas, como o do café. gostei disso, dessa intensa trama com a memória para muito além da conservação de reminiscências. assim como também gosto do sabor de café que fica no fundo da língua, depois de um tempo do último gole. a gente recobra o café inteirinho nesse paladar distante. nessa retomada, de certa forma, nasceu este texto, o qual conversa com alguns poemas do heyk. o livro (ou determinado poema) me dá o tom e alguns paraquedas. tudo aqui é incorporação, também alguma invenção.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.