Coluna | Palimpsesto
Será que você sabe que quando chama invoca meu nome no seu modo felino é algo que cria uma dobra dentro de mim?
O céu chega a ficar perto, o chão distancia
Ouço e ressoa na ponta da minha língua tudo que ele profere
Ela se estica à procura, sua boca úmida de água do rio
Uma onça só minha só para mim (que me reconheça igualmente).
Quantas vezes, sentada sobre você, seu ventre, olhei a pele revelando odores do cerrado?
Enquanto escrevo, meu peito contraído provoca a densidade do ar que muda, cria um sopro interno e desce até o períneo. Relembro de um certo voto, invisível, ali jurado entre os cheiros de que seríamos um do outro até não sermos mais.
Será que esse escrito vai chegar? Você vai ler com seu olhar castanho e pelos adornados. Já escrevi tantas vezes esperando sua resposta, mesmo no silêncio, podia ouvir seus sonoros comprimentos: na minha imaginação desejante você recitava cada palavra. Uma carta de amor deve chegar ao seu destinatário, ou ela não tem nem mesmo direção? Ou, mais, uma carta aspira chegar esquecendo de quem a escreveu?
Vou gerando pistas para que, se nunca acontecer, transforme tudo isso em rumores e em seu rastro crie uma chamada.
A lobeira com seus frutos redondos
mata os bichos que vivem no guardião
do mato seco e quente
Uma lembrança encoberta, os cabelos grudados em suores partilhados, seu corpo fazendo a forma serpenteada do mundo, já que foi da cobra que viemos, você bem sabe pois também a sente na coluna vertebral.
Dormindo enfrentamos javalis, exóticos invasores, você com a pele toda aberta e minha mão em prece passa lentamente sobre, fecha as feridas, mantém as cicatrizes. Agarro a espada e te protejo. Acredito poder conseguir te resguardar, que ninguém chegue perto com nada mais que seivas e líquidos benéficos.
Você mesmo invocou o tempo, ele há de permitir o reconhecimento, como quem adentra uma cozinha e lembra no mesmo instante que sente o cheiro da erva do chá, leve no ar morno com suas gotículas de água. Meu ímpeto acaba me fazendo esquecer que a revelação se dá no fazer contínuo, mesmo que em silêncio velado, o espírito segue caminhando pela terra. Em qualquer outro momento teria abandonado essa ideia, de cuidar de uma onça. Agora, nesses dias, sugada ao mundo do descontrole, aprendi que o cerrado volta, retorna, com suas queimadas e florescimentos das plantas mais fortes que ali habitam .
A árvore da copaíba verdeja uma sombra
um casal de onças dorme
as abelhas rondam flores pequenas
Escrever cartas a quem se conhece. Já o vi em tantos estados, já me viu no desmanche da noite, como se fosse um carro furtado e pela manhã é matéria para outro. A vontade é que me anseie no segredo, juntos talvez possamos dormir sem guerras ou ameaças externas, apenas nossos próprios ruídos de amor.
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Camilla Loreta é formada em Audiovisual e História da Arte, em São Paulo. Pesquisa a escrita, o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais. Seu trabalho foi publicado pela Editora Caixa e participou de feiras com a Plana (SP e RJ) e Tijuana (SP e RJ) em livros e zines individuais e coletivos. Dirigiu dois curtas-metragens, Clara e O Silêncio das Pedras, sendo esse último selecionado para a Semana Paulista de Curta-metragem. Participou de diversas residências internacionais e nacionais, entre elas: Kaaysa em Boiçucanga (Brasil) com o estudo Como se salvar de afogamentos; Encosta Residência na Ilha do Mel (Brasil), onde desenvolveu projetos de impacto local, dialogando com as comunidades e histórias da região; a residência solo FUGA (Nova Iorque) que rendeu seleção no Festival do Filme Livre, exibido em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em 2019; The Artist meeting em Marianowo (Polônia), onde iniciou a escrita do livro Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela, será romance de estreia como escritora, no momento em fase de aguardo para o mundo se assentar. Entre suas principais referências estão: Virginia Woolf, Matsuo Bashô, Ana Maria Gonçalves, Gita Metha, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carola Saavedra e Haruki Murakami.