A ÍNTIMA DA ÁGUA, TELÚRICA E ALADA OLGA SAVARY* – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Aos 86 anos, em 2020, morria a poeta, como preferia ser chamada, Olga Savary. Nascida no Pará, teve longa e laureada carreira como escritora, tradutora e antologista. Apesar disso, morreu em um cenário de dificuldade financeira – o que, infelizmente, parece ser comum na vida de poetas. A fim de prestigiar minimamente sua escrita, trago três poemas de sua vasta obra.

Olga Savary costuma ser destacada como a primeira poeta brasileira a publicar um livro de poemas eróticos, Magma – pioneirismo do qual ela se orgulhava bastante. Não foi a primeira a escrever poemas eróticos, mas, sim, a publicar um livro todo dedicado ao tema. Ainda que não discutamos aqui, como propõe José Paulo Paes, uma diferenciação entre poemas amorosos e poemas eróticos ou, como a própria Savary, uma diferenciação entre erotismo e pornografia, é importante pontuar que atualmente Gilka Machado tem sido considerada a primeira poeta brasileira a publicar poemas eróticos.

Além do erotismo, outro traço constantemente mencionado a respeito da poesia de Savary é a recorrência dos elementos da natureza, sobretudo da água. Símbolo do material e do imaterial, ou de planos psíquicos tanto quanto físicos, a água mina dos versos de Olga Savary e escorre por eles, como no poema a seguir:

O Segredo

Entre as pernas guardas:

casa de água
e uma rajada de pássaros.


A casa de água está entre as pernas, ou seja, entre elas, há um abrigo, uma gruta; há algo em que se é possível entrar; uma casa que se constitui de líquido ou que se desfaz em líquido entre as pernas. Milenarmente, a libido da mulher é associada à água, ao úmido, o que nos leva a pensar em uma casa-vagina, pois que dela vaza a materialidade líquida do desejo feminino.

Outro elemento constante nos poemas de Savary é o ar. Em Segredo, ele aparece na imagem da rajada de pássaros. Rajada é um aumento violento de algo. Desse modo, uma rajada de vento é um vento muito forte e veloz. Assim é um orgasmo – rápido, intenso, violento –, como um bando de pássaros presos em uma casa fechada, de repente aberta para um voo frenético.

A casa contrasta com a rajada. Uma é constante, perdurável; enquanto a outra só existe num espaço curto de tempo. Assim como o voo só existe à medida do pouso ou o pouso à medida do voo, a rajada só existe à medida do contínuo.

Se até aqui, a casa foi interpretada como vagina, também pode ser interpretada como morada menos material do desejo. A água pode ser símbolo do desejo que mina também de outras fontes menos orgânicas, que mina do inconsciente. O elemento água o representa e, em Segredo, está contido em uma casa entre as pernas. A rajada de pássaros, esta transmutação de água em ar, dá-se com a derrubada de barreiras, sejam elas gaiola ou dique. Segredo parece nos revelar a conexão entre psique e corpo: casa e rajada é contenção e excesso. Este contraste é o movimento constituinte da experiência erótica.

No poema Ycatu – do tupi, água boa –, desde o título, já se anuncia a água:

Ycatu

E assim vou
com a fremente mão do mar em minhas coxas.
Minha paixão? Uma armadilha de água,
rápida como peixes,
lenta como medusas,
muda como ostras.

Em Segredo, pernas; em Ycatu, coxas, ambos apontam, nos primeiros versos, para onde devemos olhar, para o baixo-ventre. E é lá onde a mão do mar freme, remetendo a um movimento de ondas, contínuo e ritmado. O mar, em muitos poemas de Savary, aparece como imagem do masculino (no poema Mar, por exemplo, lê-se o verso “Mar é o nome do meu macho”), provocando eroticamente o sujeito poético.

Assim como em Segredo, a cena é localizada na parte inferior do corpo, no entanto, a água faz conexão com a superior. A paixão do sujeito é uma armadilha de água. Se é possível a imagem de uma rede de água que envolve de modo carnal o objeto desejado – algo que o detém –, também é possível a imagem de que a paixão é fruto de uma armadilha de água, de uma teia do inconsciente. O que faz nascer uma paixão? Águas eróticas orgânicas ou psíquicas? Ambas?

Ycatu, a água boa, é antitética – rápida e lenta – e muda. Estes adjetivos caracterizam a paixão representada por três elementos do mar: o peixe, a medusa e a ostra. O peixe é rápido e penetrante, fálico; a medusa, lenta, ritmada pelas águas – não tem movimento próprio –, brilha ou queima, e é longeva se não for comida – o desejo erótico?! –, e a ostra, contraposta ao peixe exposto, resguardada pela concha, é carnuda, macia e penetrável.

Três é símbolo da totalidade, é a representação do uno em suas diferentes formas. Em Ycatu, é possível ver a completude através da conexão entre peixe e ostra, mediada pela medusa, ou seja, pela água-viva. O elemento água, condutor universal, une o penetrante ao penetrável.

Com uma poética tão marcada pela água, o poema seguinte chama a atenção imediatamente pelo título. Menos líquido, mas não menos dissoluto, é o caminho percorrido pelos versos de Terra:

Terra

em golfadas envolvo-me toda
apagando as marcas individuais
devora-me até que eu
não respire mais.

Segredo e Ycatu remetem-nos, em um plano imediato, a uma experiência física e, em um plano profundo, a uma experiência psíquica. Terra promove o inverso, contrariando uma expectativa mais material do elemento telúrico do título.

No primeiro dístico, o sujeito lírico envolve-se em golfadas, ou seja, envolve-se no que foi expelido, posto para fora. É a única palavra que remete a líquido ou a algo pastoso – que por sua vez, só adquire tal consistência com a mistura de líquido e sólido. E essa coisa golfada que envolve o eu-lírico apaga suas marcas individuais, apaga sua subjetividade.

No segundo dístico, no segundo momento da cena, o sujeito poético dirige-se a um interlocutor. Através do imperativo ‘devora-me’, demonstra ainda resquício de marca individual que se pretende nula ao não mais respirar.

Numa perspectiva freudiana, devorar o outro seria um processo de identificação e assimilação do objeto desejado. Ou ainda, seguindo o pensamento de Bataille, comer o outro ou ser comido proporciona um processo de fusão dos corpos. A experiência erótica seria um fundir-se em um, apagando marcas subjetivas. Em um momento efêmero, seria possível gozar da experiência da totalidade. O sujeito poético de Terra anseia por não mais respirar, por uma experiência de morte, pelo orgasmo, o breve momento em que há a perda da razão.

Terra é um poema que alia a vida à morte. Há um contraste entre o elemento terra, que nos fixa na materialidade do corpo, e a experiência psíquica que o gozo proporciona, a fusão com o todo, a perda momentânea da angústia de sermos indivíduos, seres incompletos, ou descontínuos como afirma Bataille.

Ainda é relevante lembrar que a terra é símbolo do feminino, que assim como o erotismo – dual, pois que a vida engendra a morte –, tanto representa a fecundidade e a geração quanto representa o contrário. Terra é útero, mas também é túmulo.

A poesia erótica de Savary é potente e capaz de provocar esteticamente o gozo que o corpo carrega na rajada de pássaros. Seu erotismo reafirma o corpo como veículo, como propulsor para experiências fora dele, mas a partir dele.

Depois do ar, da água e da terra, onde está o fogo? Deixo a sugestão de leitura do livro mencionado no início do texto, Magma. Sabemos que magma é a pasta ígnea do interior da Terra. Permita-se queimar pela lírica de Olga Savary e a mantenha viva entre nós.

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*“Sensorial
Íntima da água eu sou por força,
mar, igarapé, rio ou açude,
pela água meu amor incestuoso.”
(Olga Savary, em Magma)
Natureza
Fartura de água,
te dás sempre inteira
telúrica e alada.”
(Olga Savary, em Natureza e ser)

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Renata de Castro
 é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.