DANIEL FRANCOY: O VELHO, A MULHER EM CHAMAS E UNS EXERCÍCIOS DE LIRISMO – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


a violência pode medir o grau do quanto uma pessoa se afunda em lonjuras sem ventre ou descende da imaginação que fundamenta a escuta inventada do outro. a barbárie de cada dia abençoa quem traz consigo o signo do coração viciado em bater sabe-se lá por quem ou quando. em meio a tudo isso, há um velho que não sente frio, e sua presença metaforiza a degradação e a desolação coletivas da memória de um bairro do interior de São Paulo. paralelamente, um episódio fatídico ocorre: um corpo em chamas, que tanto aponta para a violência do nosso tempo quanto desencadeia o método da cicatriz movente no coração dos personagens. a gente pensa: fogo não é apenas o que queima, mas também a herança de uma vida numa mancha escura incorporada ao chão. a mancha era onde a existência recorria ao sentido do espanto. tais acontecimentos remontam à Vila Tibério, bairro de Ribeirão Preto, onde Daniel Francoy, o autor de o velho que não sente frio e outras histórias (Edições Jabuticaba, 2020), nasceu e cresceu.

Os fatos acontecem agora. […] Uma travesti entra e compra um Halls preto. Ressoa um grito de desespero. O velho permanece um totem. […] No outro lado da rua, na praça diante da igreja Coração de Maria, um dos viciados utiliza o balanço do parque em plena madrugada.
[…] O miserável escuta um grito. É uma mulher que pega fogo. […] Alguém que pega fogo dança como se tentasse exorcizar a própria alma adquirida no dia de seu nascimento.

o instante prolongado do agora arrasa a expectativa de possíveis futuros. o porvir nem sempre é doce, e pode até aceitar encomendas para dias decadentes. afinal, os fatos acontecem. desde o grito e o fogo, o ritual alucinado pelo desincorporar-se faz da mulher em chamas um antígeno surpreendente que deflagra nas pessoas o desejo de acordar de um pesadelo. uma vida ferve e se desacopla da carne e de seus despejos.

ocorrem multidões em pessoas solitárias.

o velho em seu epigrama para horas lunares pretende se conservar quase intacto de ausência, salvo alguns vaga-lumes. o narrador é preponderante em labirintos, segundo a proposição lírica do jogo. perdidos estamos no decalque de nosso ceticismo, pois a opção é sempre vencida pela escolha que não fizemos. aleluia de espelhos ante a convivência com as nossas agonias.

um grito ecoa. nem as canções de Roberto Carlos seriam tão impetuosas, a ponto de fazer com que a noite regesse o agônico deslumbre instalado pelas chamas. entre labaredas, a verdade é posta em declive. a dança luminosa do corpo faz jus ao sofrimento morosamente concedido aos que têm pele para queimar. a mulher pega fogo e dança no coração de Maria. faz folia na dor não dita de suas lembranças agora ressequidas. o narrador acompanha. alterna sua voz entre escuta e cumplicidade na dúvida provocada durante a leitura. estamos todos no mesmo barco. cada um comete um suicídio silencioso na alvenaria das próprias recordações, mesmo quando (ou se) inventadas.

eu não acredito em Jesus Cristo, mas acredito que Maria concebeu uma vida sagrada; eu não acredito na crucificação, mas acredito que Maria guardou o sudário sujo com o sangue do filho massacrado; eu não acredito na ressurreição, mas acredito que o filho morto vive na mãe, cujo coração foi trespassado pela espada e pelo fogo.

pelo suporte lúcido-imaginativo, qualquer romantismo se esvai mediante a arquitetura de uma visão acampada no lirismo da fragmentação. a abertura é mais do que as pálpebras suportam. rasga-se a pele que esconde a confusão dos olhos, cujos cílios foram perdidos no embolado remelento das confissões. a gente percebe que tanto Jesus quanto Maria estão encarnados nos que sofrem diariamente a imersão nas próprias solidões. talvez por isso a ressurreição não seja um acontecimento confiável. no entanto a devoção pela permanência do filho morto na mãe está em pé de igualdade com quem perdeu o caminho do sinal da cruz.

poesia se torna o lugar da travessia. um mosaico erguido na reconstituição de rotas para aporias. o real não dá ponto sem nó ao regurgitar no corpo de quem escreve as paisagens da lembrança e da experiência. um poema pode viabilizar o testemunho dos que viveram o tempo na corporeidade de uma única existência. mas também pode ser a itinerância que consagra o encontro de alguns destinos:

Imagine que sabia ler a miserável que morreu em chamas e que, embora pareça ridículo, ela tinha uma clara preferência pela poesia. Agora, imagine que ela remexia sacos de lixo, e que nos sacos de lixo da Vila Tibério há sempre cascas de banana, cartelas de analgésicos, ossos de frango com um resto de carne ainda presa a eles, e, eventualmente, livros de poesia, e que um dia, vasculhando certo lixo de certa casa, a futura morta encontrou um livro de poemas da polonesa Wislawa Szymborska. Então, imagine que ela decorou todas as perguntas do poema “Vietnã”, e que ela as ficava repetindo, ao estilo dos alucinados.

tão perto de estar de posse da palavra certeira no erro do alvo, a imaginação encena algumas estrofes sem dar amém às fontes de uma tal bibliografia endógena. seja como convite à fantasia ou pela proposição da instância vindoura de presenças, o imaginar no trecho acima realoca a intermitência das ações mais que representativas. quem sabe, seja um convite à percepção da cena poética (e esta em seu amplo sentido verbal, isto é, poesia como agir fundante) a ser compartilhada/vivida/encorpada/incorporada por nós, leitores.

a mulher tomou para si o poema.1 teve a voz encontrada na escrita que antes lhe era alheia. após a ressonância das imagens, fez-se íntima nas nascenças daquele corpo pré-morto. houve uma convergência entre a profundidade de Szymborska e a fome da mulher. houve uma assertiva mais que palavra entre o estômago e a vontade de estar do lado de fora das certezas. as perguntas do poema se tornaram o vocabulário da incendiária, composto pela busca alucinada no enredo de suas pernas transeuntes. ninguém passava batido. do cara saindo do Bradesco na Martinico Prado à cadela afugentada do boteco da rua Castro Alves, a paisagem de seus delírios se enturmava à lucidez dos pontos da cesárea e da laqueadura forçada. 

diante da arquitetura dos saltos presentes no livro, as formulações espantográficas da narrativa habitam o sentido degenerativo da memória. a imagem do velho é central nessa demanda. se perguntarmos ao Daniel sobre o personagem que dá título ao romance, ele é até capaz de responder: “o velho habita a mitologia da minha infância, da minha juventude”.2 um conglomerado de acepções acerca duma construção arruinante forja a nomenclatura poético-prosal dos seus arranjos. a Vila Tibério é trazida para a alucinação em ruas memoriais, e o inesperado do jogo acontece no lugar ambíguo entre destruição e desencadeamento de realidade.

O espanto existe quando a percepção da realidade alcança um ponto em que se torna, a um só tempo, uma fratura e uma pergunta.

a perplexidade não se dá tanto pelos bons modos, seria uma irrupção do real. a regência da ambiguidade é muito necessária para que a fratura alcance o silêncio pós-parto de sua eclosão, a fim de consumar o espanto. perceber a realidade é mais do que dar um alô, pois é preciso estar dentro dela, cruzando-a simultaneamente à sua travessia em nós. um conjunto sem muitos pingos nos “i”s, cujo acontecimento aflora a corporeidade comum entre a ruptura e a pergunta. a indagação movimenta algumas solitudes, componentes da arquitetura dramática dos personagens. há nisso possíveis queloides construídos ao longo do tempo, resultado da hipertrofia das lembranças. o que nos leva a crer que a cicatriz é uma questão imponente ao longo dos emblemas narrativos.

Mas qual seria o método de uma cicatriz? A ideia mais aceite é que uma cicatriz possui uma existência estática, ou seja, é sempre um resultado, e não algo que provoca um resultado.

perguntar não pela cicatriz, e sim por seu método3 impõe uma engrenagem onde se aprimoram os percursos do jogo, uma vez que por método pode se compreender alguns entre-caminhos. aqui, cicatriz é primeiro percebida por aquilo que vem depois. um resultado. a figura que marca a pele definitivamente, cuja estética do toque capta a anterioridade de algumas dissonâncias, reunidas na história da epiderme. depois se propõe que chegar ao resultado não é comemoração de gol, mas marcação de pênalti: é sempre possível uma guinada total após o empate durante os noventa minutos. essa compilação de enredos viabiliza alguns fundamentos de compreensão personativa, mais ainda quando se chega à conclusão de que “se toda cicatriz é uma existência anômala, toda cicatriz ocupa um lugar de exílio no corpo”.

é possível cogitar que a paradoxal movência da cicatriz alinhava os personagens da trama. expõe a perspectiva da realidade própria de cada um ou uma, aliada às cenas de barbárie, como o exemplo da mulher que teve o corpo queimado enquanto dormia. então, a agonia é compartilhada conosco. o que nos leva a pensar que a cicatriz tem sua condição de marca elevada ao âmbito da consciência. a imagem do exílio intensifica o estatuto de solidão, desdobrando-se conforme as particularidades de cada personagem, de suas aflições pessoais, numa corporeidade além do orgânico.

o convite feito aos leitores e leitoras para pensar caminhos nos aproxima e nos provoca. aproxima quando nossos anseios são suscitados a dançar o ritual ficcionalmente mnemônico das histórias de infância e juventude, compiladas pelo autor, a fim de nos partilhar a deterioração delas ou de fundar uma “consciência manca”. provoca quando, dadas as opções, ao mesmo tempo nos é retirada a possibilidade de decidir por outro caminho, diferente do escolhido. no entanto, é um aborto incompleto, porque embora não possamos redigir um tipo de conclusão distinta, nossa coautoria é ressignificada e reafirmada no quanto a obra permanece em nós, mediante as várias vozes e dimensões instigadas.

a errância compõe a dinâmica da narrativa, desdizendo a propriedade da veracidade como resolução infalível. elabora-se a verdade em seu sentido ambíguo, tal como a pegada grega do termo alétheia, bastante resumida aqui em: aquilo que se mostra ao se ocultar.

Você que lê: ainda acredita em mim?
[…]
acreditar em mim ao mesmo tempo que não acredita. Você que me lê entende que:

você que está aí agora mesmo lendo essa frase acredita em mim, que li o velho que não sente frio e outras histórias? acredita em alguma linha do que escrevi até agora? será que estamos todos meio sem chão, acomodados à fórmula de uma verdade estreita? será isto aqui uma resenha? e o velho, existe? o Daniel é mesmo Francoy? erramos no nome que interage a pessoa e imagem de si própria, será? erramos?

a errata nunca é um acerto, mas talvez seja a propulsão de mais uma possibilidade de erro. dizer é sempre estar no meio do caminho entre a crença e a dúvida. daí, a gente termina o velho… meio sem compostura. meio na incerteza se o livro é um manual anímico sobre o compilado memorial de uma Vila Tibério francoyniana ou se é em si o exercício escancarado de um lirismo ruído de margens. mas a forma da obra é o que menos importa. na verdade, a arritmia material do formato é um belo exercício para quem não assume o descompasso como ato de amor. o abraço na imagem corrompe a alegoria muito bem arrumadinha dos fatos, a fim de mostrar que para dançar o ritmo de um texto não é necessário acertar no dois pra lá e dois pra cá. poesia que presta, arrisco, é sempre uma afronta à utilidade. se servir já era. cara, que frase mais Paulo Leminski.

p.s. a Vila Tibério existe e não existe. demarca uma estado de múltiplos confinamentos na Ribeirão Preto das lembranças de Daniel Francoy. a composição dramática dos personagens decorre de seu carrossel mnemônico. mais ainda, a memória coletiva do bairro é sintetizada nas aflições de cada personagem e ampliada pela provocações lírico-imagéticas do autor. lembrando mais uma vez do podcast Litterae, Daniel “queria trazer para o livro o estado de degradação mental e física do bairro”. mas isso tudo eu já escrevi acima. agora, o que ninguém sabe é que a estrutura do livro me lembrou um daqueles livros-jogos de RPG, nos quais, dependendo das escolhas que fizéssemos, iríamos para a página tal e tal… legal isso… de certa forma, sem o exorcismo da violência, acabei fazendo umas visitas às minhas memórias de leitura infantil e outras histórias. por exemplo, o seu Antunes, que tinha um botequinho onde eu comprava milho bom e gastava minhas economias em chicletes Ping Pong para a coleção de figurinhas da Amazônia que me levou muitos dentes de leite.

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[1] Vietnã

Mulher, como você se chama? — Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? — Não sei.
Desde quando está aqui escondida? — Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? — Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? — Não sei.
De que lado você está? — Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. — Não sei.
Tua aldeia ainda existe? — Não sei.
Esses são teus filhos? — São.


(publicado em Poemas, sob edição da Companhia das Letras, 2011, com tradução de Regina Przybycien).

[2] colhido da participação de Daniel Francoy em um dos episódios do podcast Litterae, apresentado pela escritora e editora de livros Anita Deak e pelo escritor e professor de literatura Paulo Salvetti.

[3] quando brincamos de etimologia com as palavras, chegamos a essa possibilidade: método = metá (através de; entre) + hodós (caminho), portanto, método é algo intensamente movente.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.