DUAS – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


Maestrina

Por vezes ela se empolgava, narrando algo, nesse tesão que nos dá em todos desde a primeira mulher que nasceu diferente de sua mãe, assim: humana — e é evidente que a primeira humana foi mulher, só não me peçam as evidências — e mesmo que essa mãe de todos nós ainda não tivesse a linguagem com que narrar e gozar esse tesão que ela nem sabia inaugurar, tenho certeza: ela também se empolgava, tentando, querendo, inalcançando — o que talvez até hoje a gente siga mais que conseguindo, e talvez até isso seja parte da empolgação, mas ela se empolgava como poucos, e fazia-se torrente caudalosa ritmada, palavras como chuva a galope, música sem partitura tecendo-se a partir do próprio movimento dos lábios, ao correr da língua, regente e orquestra inteiras no som daquela voz a nossos ouvidos atentos, até que tropeçou:

— … maestral (!) –– a boca ainda aberta, feito dedo exato na guitarra sem mover-se, bochecha inchada no trompete, arco de violino a meio voo rumo à corda, mão suspensa sobre a pele do tambor. Inclinou levemente a cabeça, um desconcerto:

— Maestral… Existe essa palavra?

Eu, sedento, interessado mais na música que no sentido, muito!, querendo seguir gozando meu tesão de ouvir como o segundo ser humano (talvez um homem) que ouvia a primeira ser humana em seu gozo de narrar, respondi-lhe breve:

— Isso importa?

Sorriu.

E a música se refez em seus lábios.



Retrato de moça no vagão

Ela chora, encolhida contra a parede do vagão, apoiada numa perna esticada, tesa, enquanto a outra, semi-flexionada, vibra nervosamente.

Usa um vestido de Rorcharsch: naquele pranto, o fundo negro do tecido, seu corte reto e certa poeira cinza agarrada à barra dão-lhe ar de angustiado desamparo, quase um luto moderno sob a dor movendo-se sobre a pele. Mas a quem não lhe reparasse o rosto, ou lhe flagrasse em sorriso, num outro dia, num outro vagão, a estampa florida com seus amarelos e laranjas diria em voz risonha algum desenho mais alegre.

Colado ao rosto: o celular. Uma presença que não é bem presença — tão distante e tão próxima (ali, logo ali) do meu olhar pungido — desenha-lhe estampa de aquarela na face, fios d’água escorrendo, os cantos da boca crispados, o cabelo desarrumado caindo-lhe um pouco sobre os olhos.

Ela fala, abafadamente, tudo é tão abafado neste vagão, e não ouço, como não ouço aquela presença em voz que lhe chega pelo telefone. Não ouço, mas vejo, em meio a tanta gente que não vê as gentes outras ao redor: ela chora. Uma moça chora à minha frente, no metrô de fim de tarde. Não desvio os olhos, mas por razões diversas das tuas, que percorre essas linhas buscando saber o que aconteceu ou acontecerá em seguida: eu não preciso entender. Olho-a chorar, apenas, tão misteriosamente humana e incompreensível quanto eu. Até que chega minha estação.

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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.