AS CAPAS DE ALGODÃO TÊM AGORA FRANJAS DE SEDA – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


 

No conto “A Igreja do Diabo”, Machado de Assis define de maneira brilhante a qualidade mais evidente do ser humano: sua contradição. Hoje, na Palimpsesto, quero pensar nessa característica, a partir de Machado de Assis.

Somos paradoxais, impossível nos fecharmos em fórmulas e conceitos. Já postularam: “a vida transborda qualquer conceito”. Reafirmo que nós, humanos, transbordamos qualquer conceito.

Peguei-me dia desses pensando em um axioma que tinha escrito havia muito tempo, o qual mantenho ainda hoje:

• o que nos difere dos outros animais, o leão não convida a lebre para tomar um chá em casa.

Não pretendo explicá-lo aqui, contudo reavalio sua essência: a hipocrisia nos diferencia dos outros animais. Ainda penso que a hipocrisia corresponda a uma das nossas principais idiossincrasias, mas hoje vejo com mais carinho essa, digamos, falha de caráter.

Talvez tenhamos aprendido a ser hipócritas como forma de sobrevivência. O elogio falso da raposa é também um recurso, quem sabe desesperado, para que não morresse de fome. Cada um usa a arma que tem.

Não defendo aqui a hipocrisia, mas a percebo hoje com menos julgamento. Até porque nossa contradição nos leva inevitavelmente a uma hipocrisia, que defenderá uma causa em detrimento de outra, ambas legítimas, mas cada qual em consonância com determinada circunstância.

Por isso, talvez, eu não consiga julgar quem seja hipócrita. Quando vejo, os outros dedos já estão apontados para mim, a me lembrar que, apesar de haver um abismo entre uma pessoa e outra, não somos tão diferentes assim.

Nossa causa secreta nos une, conforme Deus já o dissera ao Diabo no conto de Machado de Assis:

— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.