DANÇA SUECA E MARTIN SCORSESE – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


Na primeira versão do meu romance Dança Sueca, havia criado uma personagem que ensaiava em frente ao espelho o hino nacional. Ela não era patriota ou algo que o valha, apenas queria ter a letra na ponta da língua caso algum repórter testasse seus conhecimentos e lhe pedisse que cantasse o hino. Isso, certamente, nunca haveria de lhe acontecer, a personagem, porém, não deixava de ensaiar escondida todas as noites, preparada para não ser ridicularizada diante das câmeras. Minha principal inspiração era Rupert Pupkin, interpretado por Robert De Niro em O Rei da Comédia.

Na época em que criei tal personagem, o YouTube ainda estava em seus primeiros anos, mas já continha vídeos que expunham pessoas em momentos bastante constrangedores, engraçados para nós, triste para elas. Inspirei-me em Rupert Pupkin, pois, no filme, ele enlouquece em busca da fama, já no romance a fama é inevitável, e a personagem enlouquece no intento de evitá-la.

A personagem morreu antes de nascer, mas a ideia continua, infelizmente, com mais força. Não se restringe mais ao YouTube. Os palhaços viraram pessoas reais, em situações em que não desejavam sê-los. Sempre que vejo a foto de uma pessoa aleatória, exposta por algum defeito, sinto ternura. Ternura por me reconhecer nela, alguém, enfim, que é errada, que erra mesmo e sobretudo quando tenta acertar. Talvez por ser canhota, eu reconheça-me no feio e borrado, e também, por ser escritora, eu goste do erro, a transgressão involuntária da norma.

Uma pena que quem ridiculariza o erro não perceba que sua ausência nos deixa todos iguais, sem cor nem sabor, um amontoado de frases previsíveis. Tenho para mim que a personagem inicial de Dança Sueca, se viva hoje, seria muda. Um retrato com filtro e sem voz, com um sorriso permanente. Daqueles de quem nunca erra.   

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.