Coluna | Sibila
“Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los”
Quase um século depois de sua morte, Florbela Espanca ainda é uma escritora que suscita discussões sobre seu erotismo, sobre sua melancolia, sobre seu suicídio – suicidou-se em 8 de dezembro de 1930, quando completava 36 anos de vida. Não se pode dizer que atualmente a escritora não tenha o reconhecimento merecido, porém ainda se vê alguma ênfase, por vezes depreciativa, a respeito do confessionalismo em sua obra – como se, em última análise, toda obra não fosse confessional… umas mais ficcionalizadas outras menos.
De fato, Espanca teve uma vida movimentada do ponto de vista afetivo, perdeu a mãe, o único irmão e casou-se três vezes. Entretanto, não parece razoável ler seus poemas como quem busca uma reveladora biografia. Embora o amor, o erotismo, a dor existencial sejam seus temas constantes – e, pelo que se sabe, coincidentes com sua vida pessoal –, os sujeitos poéticos variam desde uma alma destroçada a uma alma elevada ou desde um eu completo a um eu irremediavelmente cindido, por exemplo.
Muito se discute sobre os conceitos de escrita feminina ou de autoria feminina. Prefiro o segundo termo e concordo com Virgínia Woolf que afirmava ser possível aparecerem as experiências de vida da mulher em sua produção literária – assim como aparecem na autoria masculina. Por isso, os poemas A mulher I e A uma rapariga foram selecionados para esta reflexão, por ainda representarem situações da vida da mulher, mesmo tendo se passado um século e de terem sido escritos em um Portugal conservador que estava sob o regime ditatorial de Salazar.
O poema A mulher I foi escrito em 13 de março de 1916 e publicado postumamente, compunha um livro de mercearia em que Florbela Espanca escrevia todos seus textos, muitos deles integraram projetos realizados apenas depois de sua morte. O que hoje chamamos de livro, Trocando Olhares, foi escrito entre 1915 e 1917, ou seja, é a produção de uma jovem mulher dos vinte e um aos vinte e três anos de idade.
A Mulher
I
Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimentos cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta; sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!
Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então os vis: “Olhem, vejam
É aquela a infame!” e apedrejam
A probrezita, a triste, a desgraçada!
Em A Mulher I, há muita mágoa, um ressentimento do modo como os homens se relacionam com as mulheres, em um persistente processo de objetificação destas por parte daqueles, o que explica o uso e o descarte. O sujeito poético aconselha o coração da mulher, dizendo qual a consequência para aquele que fraqueja.
Os dois primeiros versos definem o que o eu-lírico chama de mulher, “um ente de paixão e sacrifício”, cheio de sofrimentos. A primeira definição é muito significativa, “ente de paixão”. A palavra paixão dá o tom de todo o poema, visto que pode significar um sentimento arrebatador relacionado ao amor ou à energia de viver, mas também pode significar martírio. Assim, a sequência paixão, sacrifício e sofrimento pode ser entendida tanto como uma composição de palavras aproximadas semanticamente, como uma composição de um paradoxo paixão/sacrifício que resulta no sofrimento.
Maria Lúcia Dal Farra, uma grande estudiosa de Florbela Espanca e também poetisa, em seu poema Definição imprópria, parece conversar exatamente com o primeiro quarteto de A mulher I, sobretudo nos versos que abrem e fecham seu poema: “Não sei palavra mais perto do silêncio:/ cilício.” e “Não sei palavra mais perto do silêncio:/ feminino”. Assim como no poema de Florbela, cilício e feminino compõem o universo silencioso da mulher.
O sujeito poético afirma que a mulher deve ser forte na esfera de Vênus, deusa do amor, reforçando a necessidade de ser Marte, o deus da guerra. Isto porque a mulher não encontrará paz no amor, uma vez que os homens fazem da conquista amorosa uma batalha, visando não a troca afetiva como prêmio, mas, sim, a mulher. Por isso, é estabelecida, no poema, uma relação entre a vilania e os homens: como os homens são vis, o mundo é sempre vil, pois que são eles que ditam as regras. As mulheres que não se mantêm fortes, com suas paixões silenciadas, têm, além da desilusão amorosa, o julgamento moral dos homens. Aqueles que maculam são os mesmo que julgam.
Nos versos do primeiro terceto “Essa brancura ideal de puro arminho/ Eles deixam pra sempre maculada”, há uma representação da castidade. Brancura e arminho têm sentido figurado aproximado que remete à virgindade feminina, reforçado pelo adjetivo puro. Ainda é interessante observar que arminho também têm sentido de nobreza, o que atribui valor duplo à pretensa pureza. No entanto, o sujeito poético diz que tal brancura de puro arminho é ideal, ou seja, é uma idealização masculina que visa ao regozijo da mácula.
Em uma perspectiva cristã, o uso do verbo apedrejar faz emergir a narrativa da prostituta condenada por aqueles que gozavam de seu corpo, mas desgraçaram-na, isto é, ela foi condenada a não receber a graça divina. Se for considerado que a sociedade portuguesa, no início do século passado, era bastante religiosa, é possível afirmar que o poema faz uma crítica à moral cristã da época, leia-se machista e patriarcal.
O segundo poema, A uma rapariga – lembrando que em português europeu rapariga é o mesmo que jovem mulher, sem nenhuma conotação pejorativa – compõe Charneca em flor, também publicado postumamente, em 1931. Neste poema, o eu-lírico também aconselha uma mulher, porém o tom é outro, são versos de encorajamento e empoderamento feminino.
A uma rapariga
(À Nice)
Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.
Nessa estrada de vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!
Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!
Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste de uma flor!…
Para a rapariga, a vida terá passagens lamacentas, mas quase tudo nos versos remete a situações positivas: alargar horizontes, levantar pontes, ir além, comer, beber e beijar. Ao mesmo tempo, a vida da mulher parece requerer grande esforço em busca do crescimento.
No que se refere à experiência amorosa, o verso “Beija aqueles que a sorte te destina!” revela um sujeito poético pouco preocupado com um possível julgamento moral, já que admite que pode ser mais de um. Além disso, assim como no texto anterior, é possível perceber uma simbologia cristã e estabelecer uma relação entre os frutos do poema e o fruto bíblico. O eu-lírico aconselha a rapariga a comê-los e rir, além de beber, ela mesma, diretamente da fonte as águas que a formarão. É a satisfação de ser dona de si.
A uma rapariga é uma metáfora do amadurecer feminino que, depois de todo o percurso dos quartetos, eclode nos tercetos. É a própria rapariga quem deve se plantar, senhora de todo seu processo. A cova, a terra, símbolo do feminino, representa o útero que gesta a mulher madura que vai nascer. Primeiro, surgirá a haste, isto é, a sustentação, a firmeza construída na juventude, de onde então virá a flor, uma delicadeza calcada em uma base resistente.
Assim que as mulheres puderem experienciar a vida sem delimitações em razão de seu gênero, poderemos tudo, como propôs Florbela. A Mulher I e A uma rapariga são muito atuais, apesar do século de existência que já carregam. Desejo poder dizer, em um futuro próximo, que estes poemas se tornaram datados e apenas apresentá-los como registros estéticos da história das mulheres.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.
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(Ilustração de Marta Nunes)