NÃO HÁ CURA, MAS HÁ A POESIA DE MAX LIMA – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


hesito, e por causa do Max, leio de novo Ana C: “pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu / amor de ontem”. um pouco depois do sono ainda dentro do meu corpo fingem as fagulhas, os resíduos de memória, as noites ainda escuras quando quase amanhecem… mas noite é sempre um quase, mesmo quando tudo engessa e as extremidades do corpo – pacientes de sua rebeldia – aguentam a inércia do silêncio. mesmo assim, felizes são os instantes em que o paradoxo rebenta as rédeas do que teria por dizer, e não disse, durante a tetraplegia das coisas.

XXVII

acordo
não abro as janelas
hesito um pouco na frente de A teus pés
tomo um café
hoje o dia é uma longa hora de 24 horas
atravesso a casa e estou na noite
o banheiro é uma madrugada gelada
com-fundo as horas nas coisas
posso dizer:
esse lápis com que escrevo é uma manhã
posso dizer:
a tarde é meu corredor sem passadeira
posso dizer:
a noite está debaixo da cama
o relógio da parede derreteu e manchou toda a pintura
que acabei de mandar fazer
(roxo)
ainda não inventaram a medicina das horas
não há cura para a tetraplegia das coisas
o lado de dentro da janela é mais ruidoso que uma cidade inteira


ainda com as janelas fechadas, o café na minha frente. um gole acende a mobilidade de alguns instintos um pouco adormecidos. o dia é imenso embora caiba todo numa única hora, uma longa hora de 24 horas. essa percepção faz a gente perguntar pelo tempo, em como ou em quem ele existe, se existe. isso de mirar excessivamente uma interrogação refaz dúvidas, reinfesta lugares com seus sinônimos, pulsações. tempo que vigora e não passa. dizer o decurso do tempo é um equívoco dos grandes. não pode passar aquilo cuja existência não cabe numa medida, e ainda assim ser pleno – desatino. não é possível mensurar a pertinência de suas horas, tampouco a lonjura do que houve. a gente vive o tempo em seu vigor. um longa hora de 24 horas, uma cronofagia inventada aqui para este agora.

tão distante quanto o peso da pálpebra é a casa. atravessá-la é um anoitecimento. também a noite se converte em lugar, e nesse interregno é onde estamos ao habitarmos o poema do Max. são XXVII leituras até se perceber que aqui é quando espaço e temporalidade se desconcertam, até se infiltrar banheiro adentro durante o gear da alvorada. afinal, as distâncias se desfazem: é pouco o banheiro ser apenas um cômodo, ele é uma madrugada gelada. com-fundo as horas nas coisas enquanto pertenço a uma orgia, pela qual se torna impossível negar que todo corpo é penetração, invasão. só assim é plausível dizer: esse lápis com que escrevo é uma manhã.

arrisco a aurora num traçado. um risco que se escreve aumentando a força do grafite no papel, até que a folha encarne as nuances de luz e sombras entre os bemóis e sustenidos do piano de meus dias. qualquer acidente é dissonância, não espero que o poema encare a regência por mais algumas melancolias. o caminho se abre discretamente, como se o tempo passasse da manhã à tarde sem destreza ou cuidado, mediante o encontro entre os pés e seus passos; ou como a escrita da manhã que se reverdece perante a iminência vespertina, ao tornar possível dizer: a tarde é meu corredor sem passadeira.

é escorregadio o chão da tarde sem o tapete para encobrir meus erros riscados no caminho. destino talvez seja alcançar o não planejado, ir de peito aberto ao fim do salto. conforme um túnel que liga extremos, o corredor seria a metáfora de quem se arrisca em velocidade; também uma coabitação entre lugar e tempo, por meio da passagem circunscrita entre a partida e a chegada. mas partida e chegada se reúnem em todo o percurso. uma não é sem a outra, e acontecem ambas na contínua reinvenção da fatalidade. o corredor seria tanto quem corre quanto quem acolhe a corrida. nesse lapso antropotemporal em que correr e andar de costas fazem um, seguimos errantes para a metamorfose que nos faz ter o norte nas costas ou o dia na ampulheta dos avessos, até se poder dizer: a noite está debaixo da cama.

toda infância teve uma criança com medo de pôr os pés para fora da cama, porque durante o desconhecido da noite, o mundo se tornaria a fantasia que não cabe na coragem. talvez o poema ao ser escrito tenha dito isso ao Max – um pouco ao pé do ouvido –, esse segredo dos tempos. assim nós todos voltamos à proteção das cobertas nas noites escuras, asiladas embaixo do mais completo leito. de lá, a realidade se ressignifica nos encantamentos dos desvios, buscando na mancha deixada pelo relógio derretido a parede recém-pintada, como se esta detivesse a chave para o assombro das formas. mandar pintar a tal parede seria uma afronta à introspecção das imagens, pois se retiraria a contravenção das casas esquecidas em seus próprios cômodos.

até queria achar uma solução, mas ainda não inventaram a medicina das horas. não adianta voltarmos ao início e recorrermos à Ana C. sob o tempo, estamos todos arrematados. solenes na incomunicabilidade das coisas, ante a tetraplegia que as acometem. no entanto, se coisa é também o que somos, nascemos antecipados ao choro que corta os séculos das vozes. não há cura. não há. cura não há. a paralisia nos engana se considerarmos as coisas paradas onde estiverem. não estão. moventes estamos em nossa inércia, existimos para o ritual final, para a consagração de tudo que excede sua excessividade movente. é como o poema que nos pensa enquanto estamos em sua leitura. para pensar além dele, só – talvez – pela alucinação das letras se refazendo em multidões. aquelas de lá. de lá. de lá. até percebermos que todos estão lá fora. cá, o lado de dentro da janela é mais ruidoso que uma cidade inteira.

p.s. o poema “XXVII” foi publicado em Tetraplegia das coisas (Patuá, 2020), livro de estreia de Max Lima. há nele, penso, uma certa agonia de se perceber o incompleto que nos é, que nos faz descer sempre mais abaixo do limite das coisas, sem que nunca cheguemos ao chão, porque chão não há. porque tempo é algo que jamais será interrompido. porque a estrutura modal do silêncio é tal qual a impossibilidade de se dizer o que é isso que chamei de estrutura modal do silêncio. talvez seja uma tetraplegia de sentidos, talvez uma paralisia conceitual ao pensarmos que as coisas tenham conceitos. talvez não. talvez sim (acho que não), mas se nada é fim e o início está em tudo que um dia tenha a todo instante começado, então que seja essa uma tentativa (o poema) de vingar o torpor que há em nosso peito.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.