coluna | palavra : alucinógeno
é de dentro da linguagem que a palavra vinga. vinga-se da palavra a linguagem nascida no morrente da sílaba. germina entre fôlego e paisagem a escuta antes de o verbo ser verbo. nesse meio corpo-carne-vocábulo mora a dicção quimérica do pleonasmo. o excesso é bem-vindo porque não deixa sobras após as margens. na vigília em que um e outro compõem a unidade redentora da clivagem, prospera a fala cheia de recôncavos. o transe da minhoca em seu buraco temporal. o romance que desfala a voz do conto na poética do erro quando tudo é descompasso e coexistência. o gêmeo de si mesmo é outro na propriedade singular do primogênito, descendido de seu irmão: recuo causal: retrocausalidade.
Este livro ainda não existe. […] Aqui nada cita, tudo é, acaba de nascer, com o frescor da palavra frescor ao emergir das águas recém-sidas. Tudo acaba de não ser, e também você acaba de nascer para mim: agora. Isto não é a palavra agora. Isto é o agora. Olhos nos olhos, somos só eu e você. Enquanto você não prosseguir, não cruzar o portal e adentrar o labirinto, e assim te fazes uma causa posterior ao efeito, este livro ainda não existe.
nunca existe um livro enquanto ele é. pela recorrência forjada a devires, ser talvez seja o ato constante e não consumado do existir, na medida em que este verbo – existir – diz a extrapolação, o inalcançável aberto onde vige um modo de estar no mundo. trocando em miúdos, a existência jamais é acessível, e um livro (obra, porque opera) não existe porque se mantém como possibilidade para possibilidade (ô, saudade dos textos do Gilvan Fogel), cuja apreensão incorre na ilusão de uma palavra presa ao seu significante.
nascemos em leitura, não apenas como instância conceitual de tempo, mas também como acontecimento agoral, a coisa se realizando mesmo, sabe? estamos neste exato momento sendo. um romance, poema ou obra de arte está neste exato momento acontecendo, conosco, em nós. agorando. o livro agora (de agorar) em nosso corpo; a obra artística se converte na atuação instantânea de sua manifestação no entrelugar dos leitores e leitoras. o agora é entre. entramos a todo instante na movimentação impossivelmente acessível de tudo que acaba de não ser.
como se estivéssemos continuamente do lado de fora da porta que trancamos em nosso nome, nem sempre nos damos conta de que permanente e efêmero se comungam na traição segura de nossa crítica. sejamos alguém que fala com a própria boca, a fim de perder todos os dentes. sejamos inconciliáveis: “Pessoas são essas coisas heterogêneas, partes incompatíveis, todos incoerentes, carregando a cruz de ser, contra tudo”. a narratividade de um romance não apenas conta uma história, mas nos traduz autêntica e causalmente tal qual um paralelo com o ato da escrita na transição do pré ao pós-rascunho. obra completa naquilo que insistentemente falta é tudo que escrevemos. a incoerência talvez se conceba na dramatização dos encontros, dos avios de nossa imaginação com a repercussão do que captamos nas conversas dos vizinhos.
contra tudo, carregando o peso do corpo, a palavra se catapulta da linguagem a fim de encontrar a língua como chão. leva na aba de seu risco a danação errática da sintaxe. escrever se insere na demiurgia do colapso. traçar um esquema, seja um personagem ramificado na absorção de si para existência do outro: Álef / Ramanuvem. do início ao ramo da nuvem, onde ser e não ser cirandam, Álef alegoriza o quimerizado. personagem-ação, o qual chamei (um mimo!) de ocorrência nevrálgica da pré-escuta, é o que virá porque já foi. ele talvez seja algo como a tragédia da circularidade:
A lei do eterno retorno é também a da existência de tudo, da omniexistência. Nada que se possa imaginar pode se furtar a um dia vir a existir, sonhar é gerar, pense na responsabilidade. Omnirealismo. Tudo não pode ser senão real. Toda ficção, psicografia. Toda alucinação, revelação. As palavras, como os números, não mentem: conceber é uma forma de concepção, todo escritor é um demiurgo, um genesiarca. Que eles não nos eximamos.
tudo não pode ser senão real. a ficção encarna a modelagem fingida da forma. fingir – Pessoa já nos ensinou – não é somente a ação de mentir, mas também a de reelaborar com as mãos a arquitetura do que se apresenta sob a argila da realidade. Álef personifica o princípio das coisas numa possível ficcionalização de si ante a desenvoltura coletiva da assimilação. juntava histórias de pessoas em suas coleções de carteiras de trabalho, fotos 3×4, nomes incomuns. todos sendo ele próprio na divergência existencial de uma linha enviesada, sem rumos. como se quisesse subir ao topo de qualquer coisa chamada céu, veste-se de gênese sem pensar muito aonde chegará. gera porque sonha.
incorporações têm dessas coisas, o corpo de quem carrega é o mesmo de quem leva consigo algumas existências. a causalidade de retravés no tempo conjuga o espaço das escolhas ou se submete à viragem dos dados. poesia é uma prática de conjunções na qual o drama da prosa se alinhava ao que simultaneamente é oferecido como imersão e visagem: “Era entrar em algo que entrava nele que entrava no algo, entremergulho, enfim. Nem sempre se pode dizer quem mergulha e quem é mergulhado, por ser recíproco, relativístico.”
relatividade tem a ver com as tentativas de vencer as dificuldades em se mensurar causas nos efeitos. reciprocidade é este agora em que nos encontramos, cada qual em sua fecundidade identitária, dando as mãos e o corpo inteiro na virulência disso aonde o antes e o depois não chegam – e nem passam perto do compromisso com o instante dos muitos nascimentos desta leitura. evidentemente, esta situação só é possível devido ao transbordamento retrocausal, provocado pelo romance joãopauloparisiano. uma quimeridade das grandes!
Ramanuvem é o nome a quem atribuo a concisão do quase impossível. meter-se em régua com ele é uma desavença à aritmética dos corpos, muito mais algébricos que só numéricos. compõe-se de fronteiras marcadas na pele. por extensão metafórica ou por pura invenção da minha parte, assimila o princípio – álef – das fábulas num mimetismo andrógino para além de se cogitar alguma discussão sobre gêneros. ele é a dúvida (paternidade?). o lugar do meio (cores?). a projeção quimérica dos anseios, demarcados em vertigens calcificadas in utero (ele é seu próprio gêmeo). a retrocausalidade ocorre dentro e fora, quando o dentro e o fora sucumbem às limitações espaciais ante a determinante (?) ficcionalização poética do real. sob o título quimerizado do “enquanto”, acessamos o sincronismo proposto pela existência de um livro que sequer foi concebido:
[…] enquanto mal posso não posso suportar a simultaneidade de tudo o mundo enfim é de uma horrível intolerável efervescência sem ponto final.
um livro sequer nascido porque anda em comprometimento com a existência, e existir, já foi dito, seria ocupar o aberto; ou ainda: ser a própria abertura como limite. nessa tensão se posicionam as vozes na narrativa retrocausal. não se pontua uma fala, mas se fala a linguagem como modo de apropriação do movimento simultâneo entre o real e as possíveis realidades. esse jogo se dá pelo quimerismo, o qual deixa de ser um verbete de dicionário para incorporar e realizar a efervescência sem ponto final do mundo. esses modos de aparição acontecem na linha tênue entre a experiência dos personagens e a posse do romance em sua impossibilidade de existir.
é difícil dizer o que não pode ser dito. seria um koan, um enigma quimérico, uma palavra na iminência de sua estreia – fracassada na ação de ocupar sua inaugurabilidade, dada a impossibilidade de ser sempre o que já houve. o tempo não é quando apenas, conforme já imortalizado num poema, é ondequando. não poder suportar a simultaneidade de tudo seria a confissão da verdade mais verdadeira, presente em tudo que é vivo. se uma obra de arte – aqui, no caso, a literária – tem como pretexto a incorporação da agonia humana pela vida que é, então se materializam nas travessias das falas as personas vigentes na lei do eterno retorno: “O escritor é o obscuro gêmeo parasita do romance que está escrevendo.”
o romance existido é uma ilusão editorial, autoral, vai saber… a gente pega nas páginas, rabisca uns dizeres durante a leitura, faz marcações… para nada. não existe, e existe. Álef não é Ramanuvem. princípio não é oposto de fim (isso é um equívoco gramatical, tanto como não existem palavras sinônimas). princípio e fim são o mesmo. Ramanuvem e Álef se desdobram: “decaem em estado de ficção, de quimera. Quimerizam-se”.
escrever é tentar fazer um desenho de linguagem. captar na letra a imanência do vocábulo em voo. a paragem num dado termo até gera uma alegria, ainda mais em quem se vê vivente nessa coisa de escrever. quase um puro engano. por exemplo, fazer uma resenha sobre um romance – nesse caso especial em que o romance se coloca lúcido de sua impossibilidade – é um grande equívoco. não se pode escrever sobre, escreve-se com, a partir de. um poema nunca é uma captura de circunstância, mas a realidade ela mesma aparecendo em cada aceno de vírgula ou ausência de pontuação, segundo a acontecência do real que nos é. já que o mundo, vale repetir, é uma intolerável efervescência sem ponto final. um poema é um romance. uma quimera. um quase.
o leitor cria o presente durante a leitura. não precisa de quem o oriente. é uma testemunha ocular proferida desde seu lugar oracular. e digo mais: certa vez um poeta defendeu que o lugar de poetas são as palavras. depois, reviu-se. percebeu que o lugar das palavras é a linguagem, portanto, também o lugar de poetas; e poeta não é quem faz poemas, mas quem se encontra em estado verbal de voo. entre palavras e imagens, coincide com o círculo que alinhava o que foi, é e será. daí, vale cogitar que a manifestação da memória é o acontecimento do presente. sobra-nos, então, habitar o limite retrocausal da leitura, pois, parece sábio concordar:
Tudo é linguagem. A linguagem das palavras é só uma linguagem, das últimas, mas o bailar de sombra e luz nas paredes de uma taberna na Mancha também é linguagem, só que em sua própria língua, não na das palavras, que é um só dos idiomas do mundo […]. Tudo nos diz alguma coisa, tudo nos transmite uma pletora de sentidos, mas nos tornamos habitantes da Palavra, e ficamos cegos e surdos para tudo o mais que é Linguagem. […]. O mundo é o incessante e polifônico discurso de Deus.
p.s. Retrocausalidade, romance de João Paulo Parisio, foi publicado em 2020 pela Cepe. sem muito mais o que dizer, pois ainda estou boladão com a leitura, se fosse aqui dar uma de crítico, até diria que este romance do Parisio não apenas conta uma história como também realiza uma paisagem. e paisagens, a gente sabe (ou estou inventando agora) não são contemplativas, mas mergulháveis. importante anotar para pensar depois que: “O mundo é o útero da Quimera”. cruciais são os desvios.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.