Coluna | Palimpsesto
Minha infância é longínqua, marca um tempo em que brincadeira era pautada por música, e todas cantávamos enquanto pulávamos corda, fazíamos uma ciranda ou simplesmente coordenávamos as mãos em uma coreografia com palmas. Uma das músicas que cantávamos narrava a história de uma pessoa desde pequena até a morte. A música começava com algo como “Quando eu era bebê, eu era assim”, e fazíamos a mímica de uma mãe ninando um bebê, passava pela criança, jovem, titia, mamãe, velhinha, até que chegava à morte, quando cantávamos “Quando eu era pó, eu era assim”, e assoprávamos. Aquela parte sempre me intrigava, “como eu, este corpo que brinca, pensa, canta, reza etc. virarei pó?”. Batia um desespero, momento que eu emendava com outra música como forma de não ter que lidar com aquilo.
Esse circunlóquio é para apresentar minha raspadinha da vez, que nos reduz a pó e cinza. Uma metáfora com a qual ainda hoje não sei lidar, mas que, vez ou outra, me sopra do que somos feitos, para meu desespero.
“Permiti, porém, que “eu, pó e cinza”, fale à vossa misericórdia.”
Santo Agostinho
“Confundiste o meu nada; reduzido
A cinza e pó que sou, mereço a morte.”
Livro de Jó
_______________________
Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.