NAPOLEÃO DE HOSPÍCIO – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


 

“As palavras são sempre e inevitavelmente as palavras dos outros”
Bakhtin

Há um capítulo da minha tese de doutorado (apresentada aqui na época de homenagens à Clarice Lispector) do qual gosto muito, intitulado Entrevistas Cruzadas, em alusão à linha cruzada. Aos muitos que me leem e não sabem seu significado, explico, quando nos comunicávamos pelo telefone fixo, era corrente nossa ligação ser entrecortada por outra ligação telefônica, e, enquanto falávamos, ouvíamos vozes e conversas de pessoas desconhecidas, algo muito rico para a literatura, diga-se, mas bastante irritante para os envolvidos naquela comunicação.

No capítulo em questão, analiso o quanto das entrevistas anteriores de Clarice Lispector reverbera na entrevista que leio. Além de também analisar as palavras daquela entrevista em outras produções tanto da entrevistadora quanto do entrevistado.

Dos trechos estudados, trago para meu texto de hoje um especial, pois também divaga sobre uma questão que muito me toca: o que é ser um sujeito realizado?   

Começo com um fragmento da entrevista de estreia da Clarice Lispector para a revista Manchete com Nelson Rodrigues, em 1968:

— Você se considera artisticamente um homem realizado?
— Não. Eu me considero inversamente um fracassado. Não me realizei e nem acho que alguém se realize. O único sujeito realizado é o Napoleão de hospício, que não tem Waterloo nem Santa Helena.

Após a entrevista, em 9 de maio de 1973, Nelson Rodrigues escreve no jornal O Globo:

[…]

Perdoa-me por me traíres forçara na plateia um pavoroso fluxo de consciência. Eu posso dizer sem nenhuma pose que, para minha sensibilidade autoral, a verdadeira apoteose é a vaia. Dias depois, um repórter veio entrevistar-me: — “Você se considera realizado?”. Respondi-lhe: — “Sou um fracassado.” O repórter riu, porque todas as perguntas sérias parecem engraçadíssimas. Tive que explicar-lhe que o único sujeito realizado é o Napoleão de hospício, que não terá nem Waterloo nem Santa Helena. Mas confesso que, ao ser vaiado em pleno Municipal, fui, por um momento fulminante e eterno, um dramaturgo realizado, da cabeça aos sapatos.

Interessante que, alguns anos antes da entrevista, na crônica publicada no dia 06 de março de 1965 no jornal O Globo, Nelson Rodrigues escrevera:

[…]
Aliás, prefiro generalizar: o gênio é impróprio para qualquer ambiente, seja sarau o velório, boteco ou farmácia. Vejam Napoleão, o Grande. Acabou perdendo para o Wellington, e quem era Wellington? Um bobo. Sim, este é o destino do gênio: perder a última batalha. Por isso eu sempre digo que o verdadeiro Napoleão é o falso, e repito: é o Napoleão de hospício, que não tem Waterloo nem Santa Helena.
[…]

À interrogativa de Clarice Lispector, Nelson Rodrigues respondera antes mesmo de ela ser formulada, e mantivera o diálogo muitos anos depois. A propósito, a questão acerca da realização, tanto profissional quanto pessoal, perseguirá a autora em muitas outras entrevistas, pergunta direcionada inclusive à própria entrevistadora:

Você se sente realizado como escritor, como escritor, Érico? Eu, por exemplo, ainda não me sinto, e tenho a impressão de que será assim até eu morrer.
(LISPECTOR, C. Revista Manchete, Rio de Janeiro, ano 16, n. 872, p.52-53, 04 jan. 1969)

Na entrevista com a artista Fayga Ostrower, a poucos meses antes de morrer, Clarice chega a admitir, pela voz da entrevistada:

Você se julga realizada?
— Não sei responder a sua pergunta. (Nem eu.)
(LISPECTOR, C. Revista Fatos e Fotos/Gente, Brasília, ano 16, n. 843, p.46-47, 17 out. 1977)

Ademais, é interessante observarmos como a pergunta e a resposta de Nelson Rodrigues estão presentes na produção literária de Clarice Lispector. Há uma passagem pontual em A paixão segundo G.H.(1964), que merece ser assinalada:

Ajo como o que se chama de pessoa realizada. Ter feito escultura durante um tempo indeterminado e intermitente também me dava um passado e um presente que fazia com que os outros me situassem: a mim se referem como a alguém que faz esculturas que não seriam más se tivesse havido menos amadorismo. Para uma mulher essa reputação é socialmente muito, e situou-me, tanto para os outros como para mim mesma, numa zona que socialmente fica entre a mulher e o homem. O que me deixava muito mais livre para ser mulher, já que eu não me ocupava formalmente em sê-lo.

No trecho destacado, a narradora julga a pessoa realizada a partir do julgamento dos outros, da sociedade: a “pessoa realizada” é o que se chama. A passagem também denota o interesse da romancista pela dúvida: “o que é ser realizado?”. Dúvida anterior, e, ao mesmo tempo, posterior às entrevistas, haja vista que, ao final delas, permanece sem resposta. 

Por outro lado, é curioso observar como tal interrogativa é tecida em Um sopro de vida (1978) — publicado postumamente — quando o narrador, tal qual Nelson Rodrigues, se considera um fracassado:

AUTOR, — Ângela é muito parecida com meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência imprescindível: não abro mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso — pois sou um grande fracassado — o fracasso me serve de base para eu existir. Se eu fosse um vencedor? morreria de tédio. “Conseguir” não é o meu forte. Alimento-me do que sobra de mim e é pouco. Sobra porém um certo secreto silêncio.

Nota-se que se estabelece aqui uma espécie de diálogo entre Clarice Lispector e Nelson Rodrigues. Como se no texto literário a ficcionista guardasse uma resposta ao seu primeiro entrevistado; resposta esta que, inclusive, o provoca, ao lançar mão de uma afirmação sua para provar o contrário. Se para Nelson Rodrigues ninguém é realizado, nem Napoleão, que, no final, perdeu a última batalha, e a perdeu para “um bobo”; para Clarice Lispector, o fracassado mesmo é realizado, visto que se realiza no próprio fracasso: “Se eu fosse um vencedor? morreria de tédio.” 

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna semanal na revista Vício Velho.