coluna | palavra : alucinógeno
um nome arruma o peso da casa na qual se mora entre tantas palavras. dizer a palavra que nomeia a casa do nome. pesar a mão enquanto se escreve assinala o risco de se desenhar um arranjo de libertações/prisões com o nome de letras. a complexidade da trama é tamanha, ao ponto de se fazer imergir na voz a própria quietude. dizer é uma ruptura. interrompe a totalidade última do silêncio a palavra que mora na casa onde se entra por tudo que já passou e, por essa razão, resolveu-se chamar passado. futuro é isso que não vem. passado é o agora depois de ter sido. corre atrás do nome a conjuntura orgânica do que cabe na engenharia da boca ou o que se arquiteta na grafia, cujo traçado tangencia vazios.
ATRÁS DO NOME
dizemos a palavra casa para referir a uma casa
dizemos casa e indicamos com a mão –
temos um nome
dizemos esta é uma casa, a minha
e ao alcance das mãos estão as coisas a que referimos
nós somos os que colocam o mundo à distância
das nossas mãos
então, quando caminhamos, atrás de nós caminham
os nomes; à nossa frente, caminha o passado
e, quando vemos o futuro, dizemos o passado
um homem não sabe que pode deixar os nomes
no chão e caminhar com as mãos vazias
sempre dirá isto, sempre dirá aquilo
não sabe que pode deixar os nomes no chão
e ancorar sua casa no vazio
sempre dirá isto ou aquilo
porque não sabe que pode se livrar
do vazio, livrando-se do nome
não sabe que pode desancorar dos nomes
habitando o vazio
de dentro do poema, é possível cogitar que a existência de uma coisa é uma sombra porque a coisa é atrás do nome. por mais que se tente tomar a dianteira, a disputa é implausível. nascido depois do silêncio, o nome exerce o poder da nomenclatura a partir da materialidade do verbo. o dizer está adiantado em relação ao seu próprio atraso. é como a palavra casa: “dizemos a palavra casa para referir a uma casa / dizemos casa e indicamos com a mão – / temos um nome”. a indicação com as mãos aponta os andaimes na construção do gesto. nessa edificação perfila a morfologia do dizer. estrutura-se um nome a partir do corpo da palavra – quase intangível .
ter um nome é tal qual a posse do imponderável. contraditoriamente, proferir um nome é tê-lo. ou seríamos nós, dizentes, a propriedade do dizer? se o silêncio é antes, se a linguagem seria a reunião do que não pode ser mensurado em palavras, então o poema nos é uma aporia. ficamos sem saída, carregando as calças no braço, fazendo de conta que realidade é apenas uma fantasia da nossa cabeça. também, quem sabe. talvez seja a realidade uma retrocurvatura do que enunciamos durante e antes de qualquer fala. “dizemos esta é uma casa, a minha” no êxito de se pular o muro erguido pelo nome e sair de detrás dele para uma apropriação. é minha esta casa do tamanho da palavra que articulo. é minha esta casa tornada habitação pelo gesto manual. o dizer é uma ocupação.
a situação se enviesa para uns lugares táteis, porque “[…] ao alcance das mãos estão as coisas a que referimos / nós somos os que colocam o mundo à distância / das nossas mãos”. ter entre os dedos a posse do que existe, e só existe para escapar, é um desejo demiúrgico. o alcance é após o dizer e atrás do nome. nascida a coisa depois de pronunciada, vê-se elaborado um intervalo no qual se reúnem nossa responsabilidade interventiva pela artesania material do mundo e o que precede essa intervenção. um tipo de vitória, porventura, a de colocar o mundo à distância das mãos, desde a coautoria com o que ainda não se deu a ver. como se medir com as próprias mãos a febre fosse mais que um livro de ricardo domeneck, fosse então um alívio, ou um assombro com as digitais num lugar entre passado e futuro.
ver quem sabe seja um modo de acolher o que nos dizem as mãos. uma captação de corpo inteiro pr’além de algo com risco de alma, se alma fosse o inverso do corpo em vertigem. no entanto, o que fica desse entendimento é a encruzilhada na qual o ver e o dizer reagem ou retroagem à aprendizagem do tempo, sendo este mais que instância de passagem. diria aqui, pelo impacto do poema, tratar-se de um transe cuja experiência locacional se intrometa mutuamente na conformação de uma unidade espaço-manual, de um instante que já era; e isso bem antes de a gente perceber que, na andança, o vir a ser diz o que já houve porque “quando caminhamos, atrás de nós caminham /os nomes; à nossa frente, caminha o passado / e, quando vemos o futuro, dizemos o passado”.
seria um estado de renúncia durante o dizer. vem à lembrança uma passagem de heidegger: “uma coisa só é e existe onde a palavra está garantida”, portanto, se não houver palavra, nada feito. eis a vigência do vazio e silêncio primordiais, que, por sua vez, possibilitam a palavra acontecer. circularidade. mas o que garante a palavra? não sei não, mas a gente inventa meio ambiguamente que a garantia da palavra seria aqui tanto o que ela assegura quanto a observância de ela mesma – a palavra – estar assegurada no dizer. um equívoco seria supor a garantia como algo resguardado. é mais que isso. garantia vem na ação da renúncia, exatamente quando “um homem não sabe que pode deixar os nomes / no chão e caminhar com as mãos vazias”.
tão liberto quanto agarrado à concretude do verbo é esse homem. ele desconhece a linguagem e suas deveniências porque é impossível dar conta da força realizante do real. não sabe que pode se desfazer dos nomes, não sabe. contudo não é por falta de sabença e sim porque é impraticável pular a própria sombra. homem já é um nome. se não o fosse nem existente seria. e existe? meio clichê, talvez, mas como não trazer também o joão guimarães: “Existe é homem humano. Travessia.” com todos os nomes em seu bojo alma-carnal, carrega consigo a nomenclatura pré-dizente da língua. daí a gente pensa que caminhar com as mãos vazias é uma libertação para o paradoxo. por isso, por ser uma existência de linguagem, “sempre dirá isto, sempre dirá aquilo”.
tão longe de tão perto, não sabe que pode “ancorar sua casa no vazio” e ser sua própria habitação. não sabe o homem. o homem não sabe o homem. a humanidade é aquém e além de sua atuação prosódica no mundo. um desespero semântico até. sempre dirá isto ou aquilo porque descende da fatalidade da palavra, ser voante. não sabe que não sabe, e não saber pode dizer toda possibilidade possível. o nome. mais que substantivo, um lugar de substância. a subsistência. um ortônimo performático ou a invenção de um epíteto que carregue nas costas sua própria fuga. livrar-se do nome, um delírio, um desejo que acompanha o destino de todo a se dizer. dizer é um nome e o nome subjaz. o homem não sabe que pode “desancorar dos nomes” e habitar o vazio porque talvez a humanidade seja o vazio incorporado nas práticas da materialidade de se manejar a língua e voltar a cair na epopeia da (sua) nomeação.
p.s. este texto foi escrito quase um pouco após minha leitura de Nós só compreendemos muito depois (Corsário-Satã, 2021), segundo livro de poesia da Laís Araruna de Aquino. seu escrito é dessas obras tanto pensantes quanto convidativas ao tempo de experiências da autora entre amigos e lugares mais que físicos. há muito silêncio em suas mãos. seu livro se divide em quatro partes: “Vivendo no mundo material”; “Língua” (confesso, para mim, a melhor parte); “Noturno” e “Erguei bem alto a vida, carpinteiros”; e ainda conta com um posfácio de Daniel Arelli. as citações que apareceram por aqui são de Martin Heidegger – colhida do ensaio “A palavra”, integrante do livro A caminho da linguagem (Vozes; Editora Universitária São Francisco, 2003) – e de João Guimarães Rosa, frases finais do imenso Grande sertão: veredas (Nova Aguilar, 1994). gosto desse tempo próprio que os poemas criam na gente, de quando ao terminarmos a leitura, as imagens ficam reverberando nos nossos passados tão futuros ou nesses presentes que nos chegam em bandos.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.