Coluna | Sibila
“Não tenho a soberba de suas flores, nem temor
De suas calúnias.”*
Às vezes, o tal algoritmo de redes sociais me entrega uma postagem realmente interessante. Foi em um momento virtual assim, auspicioso, que conheci Renée Vivien. Em junho do ano passado, por ser o mês do orgulho LGBTQIA+, o algoritmo me mostrou, de um perfil de fotos vitorianas, um registro, do início do século passado, de uma jovem poetisa vestida à Luís XIV.
Inglesa, seu nome de batismo era Pauline Mary Tarn, mas não parece gratuito que o tenha mudado para Renée – literalmente renascida, renata – quando assumiu uma vida independente em Paris. Sua história pessoal por si só é trágica, cheia de paixões e desilusões amorosas, passando por um período de desregramento no consumo de álcool, uma tentativa de suicídio por ingestão de láudano, chegando, de fato, à morte aos 32 anos por se recusar a comer.
Apesar da síntese, a biografia de Renée Vivien não se resume a poucas linhas e seriam necessários muitos textos para tentar abarcar sua vida, que entrelaça de modo indissociável os acontecimentos de ordem íntima, seu posicionamento político e sua produção literária. Seus epítetos “Musa das violetas”, “filha de Baudelaire” e “Safo 1900” são reveladores.
Renée era chamada de “Musa das violetas” não só por seu gosto pela cor e flores violetas, mas principalmente por sua amiga – e provável primeiro amor – Violet Shillito, que morreu muito jovem. Já a designação de “filha de Baudelaire” deve-se ao fato de a poesia de Charles Baudelaire ter influenciado bastante a escrita de Renée, sobretudo no que se refere à melancolia. E, finalmente, ficou conhecida como “Safo 1900” por ter sido a primeira mulher a traduzir Safo diretamente do grego, por ter escrito poemas sáficos e poemas lesboeróticos, por ser lésbica e por ter desenvolvido um trabalho de reconfiguração da imagem da ilha de Mitilene, a ilha de Lesbos, que, no início do século XX, era representada nas artes de autoria masculina a partir da ótica heteronormativa – ou seja, a representação do amor entre mulheres em um espaço feminino visava à excitação do desejo erótico do homem, que participa da cena ou a observa.
É importante destacar que Paris, nesse período, vivia a chamada Belle Époque e acolhia não só artistas, mas muitos que não encontravam espaço em seus países de origem, entre eles os homossexuais. O lesbianismo e a bissexualidade eram relativamente comuns e aceitos, desde que não fossem públicos. A liberdade não era total, havia, por exemplo, uma lei desde 1800 que proibia as mulheres de usarem roupas masculinas. Caso quisessem usar calças para andar de bicicleta ou cavalgar, era necessária uma autorização policial. Com essa informação em mente, embora Renée Vivien estivesse sempre bastante feminina em termos estereotipados de vestuário, a foto que menciono no início do texto torna-se mais significativa, mais subversiva e desafiadora para a época.
Poetas como Baudelaire e Verlaine retrataram o amor entre mulheres em suas poesias, no entanto Renée Vivien diferencia-se deles por reivindicar a legitimidade dessa representação, alegando que a imagem criada pelos homens não corresponde ao amor sáfico real, corresponde apenas a uma fantasia masculina. Para ela, quem sabe falar sobre lesboerotismo são as mulheres que amam mulheres.
Além de assinar os textos com seu nome, um nome feminino, negando-se à prática da pseudonímia para disfarçar a autoria feminina, sua poesia amorosa e erótica é em primeira pessoa. Em muitos de seus poemas, há um eu-lírico feminino que se dirige a outra mulher, como nos versos de “À mulher amada” (À la Femme Aimée): “Sinto estremecer sobre meus lábios mudos/ A doçura e o temor de teu primeiro beijo” (Je sentis frissonner sur mes lèvres muettes/ La douceur et l’effroi de ton premier baiser); ou nos versos de “Canto” (Chanson): “Mas quando tão branca entre meus braços,/ para meu grito de amor que se extasia/ Sorris e não respondes,/ Teus olhos fechados congelam-me a alma…” (Mais quand, si blanche entre mes bras,/ À mon cri d’amour qui se pâme/ Tu souris et ne réponds pas,/ Tes yeux fermés me glacent l’âme…), ou ainda nos de “Eu te possuí” (Je t’ai possédée): “E minha carne conheceu o sol da tua carne…/ Abracei a chama e a sombra e o orvalho,/ Teu gemido morria como o mar/ Lascivo e extenuado” (Et ma chair connut le soleil de ta chair…/ J’etreignis la flamme et l’ombre et la rosée,/ Ton gémissement mourait comme la mer/ Lascive et brisée).
Por seu posicionamento claro, Renée Vivien sofreu muitas críticas. O poema “Pelourinho” retrata a não aceitação social de sua sexualidade: “Durante muito tempo, fui amarrada ao pelourinho,/ E as mulheres, vendo que eu sofria, riram.// Então, homens pegaram lama/ Com a qual salpicaram minhas têmporas e bochecha.// As lágrimas tomaram-me, tempestuosas como as ondas,/ Mas meu orgulho fez-me conter os soluços.// [… ]// O lugar era público e todos tinham vindo,/ […]// […] E o vento trazia-me o barulho de suas palavras.// Senti a cólera e o horror invadirem-me./ Silenciosamente, aprendi a odiá-los.// Os insultos açoitaram, como chicotes de urtiga./ Quando enfim me desataram, parti.// […].” (Pendant longtemps, je fus clouée au pilori,/ Et des femmes, voyant que je souffrais, ont ri.// Puis, des hommes ont pris dans leurs mains une boue/ Qui vint éclabousser mes tempes et ma joue.// Les pleurs montaient en moi, houleux comme des flots,/ Mais mon orgueil me fit refouler mes sanglots.// […]// La place était publique et tous étaient venus,/ […]// […]/ Et le vent m’apportait le bruit de leurs paroles.// J’ai senti la colère et l’horreur m’envahir./ Silencieusement, j’ai appris à les haïr.// Les insultes cinglaient, comme des fouets d’ortie./ Lorsqu’ils m’ont détachée enfin, je suis partie.// […].)
A escolha por traduzir integralmente o poema melancólico com o qual finalizo este texto, “Canto à minha sombra”, deve-se ao fato de a sombra ser uma imagem constante na lírica de Renée. Depois de décadas silenciada, sem ser reeditada, sem ser mencionada nos manuais de literatura francesa, Renée Vivien parece começar a ser um nome que extrapola o meio acadêmico pela atualidade de suas ideias a respeito da posição social da mulher e da mulher lésbica.
Após ter feito a tradução de “Canto à minha sombra”, descobri que há pouco tempo uma jovem cantora francesa o musicou. Ainda que seja um movimento tímido, Renée Vivien está renascendo, desta vez não por si mesma, em um ato individual, mas, sim, coletivamente, na voz e na escrita de outras mulheres comprometidas com o resgate de nossa história.
Canto à minha sombra
Reta e longa como um cipreste,
Minha sombra segue, a passo de loba,
Meus passos que a aurora não louva.
Minha sombra anda a passo de loba,
Reta e longa como um cipreste.
Ela me segue como uma censura,
Na luminosidade matutina.
Vejo nela minha sina
Que se estreita e se configura.
Pelas manhãs, através das campinas,
Minha sombra segue, como uma censura.
Minha sombra segue, como um remorso,
O rastro de meus passos sobre a grama
Quando vou, com minha guirlanda,
Para o caminho onde jazem os mortos.
Minha sombra segue meus passos sobre a grama,
Implacável como um remorso.
Chanson pour mon ombre
Droite et longue comme un cyprès,
Mon ombre suit, à pas de louve,
Mes pas que l’aube désapprouve.
Mon ombre marche à pas de louve,
Droite et longue comme un cyprès.
Elle me suit, comme un reproche,
Dans la lumière du matin
Je vois en elle mon destin,
Qui se resserre et se rapproche.
À travers champs, par les matins,
Mon ombre suit, comme un reproche.
Mon ombre suit, comme un remords,
La trace de mes pas sur l’herbe
Lorsque je vais, portant ma gerbe,
Vers l’allée où gîtent les morts.
Mon ombre suit mes pas sur l’herbe,
Implacable comme un remords.
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* “Je n’ai point l’orgueil de vos fleurs, ni l’effroi
De vos calomnies.”
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.