Coluna | Lorca
Quando pensamos em Al Pacino talvez o primeiro filme que nos venha à mente seja The Godfather, lançado em 1972, conhecido aqui no Brasil pela sua icônica e criativa tradução, O poderoso chefão. Mas tenho de confessar que ao olhar para a face desse ator o primeiro filme do qual me recordo é Cruising (1981). A versão brasileira também recebeu um nome engraçado e a meu ver bastante assertivo: Perdidos na Noite. Eu talvez mudasse apenas uma coisa, se pudesse. Livrar-me-ia do plural e deixaria apenas Perdido na Noite. Sim, no singular, já que, na história, quem vaga e se perde pela noite de Nova Iorque em busca de um assassino em série que mata homossexuais é o policial e investigador Steve Burns, interpretado pelo prodigioso Al Pacino, que na época contava com os seus quarenta anos, embora parecesse mais jovem.
Para quem conhece um pouquinho sobre esse filme e sua história sabe de todas as polêmicas que o envolveram, sobretudo na época do seu lançamento. Parte da comunidade gay e queer de Nova Iorque viu com maus olhos o enredo do filme dirigido por William Friedkin. Na altura, muitos ativistas gays acreditavam que o filme endossava o discurso de que homossexuais eram pervertidos, já que a história se desenrola, principalmente, em clubes suburbanos frequentados por sadomasoquistas e fetichistas. Num tempo em que a comunidade gay precisava lutar, muito mais do que hoje, contra todo tipo de estigmas e preconceitos, é de se compreender o receio dessas pessoas, que desejavam ser aceitas, vistas como pessoas normais, com direitos, como qualquer cidadão. Daí o esforço para afastar essa visão e essa realidade marginal que o filme traz à tona.
Seja como for, olhando para essa obra com o distanciamento que os tempos atuais nos permitem, percebemos que o filme retrata apenas uma pequena faceta da realidade de alguns bares e clubes gays da época. Não pode e não deve ser lido como um filme que tenta marginalizar, ainda mais, esses sujeitos. Na verdade, Cruising não é só uma obra de suspense e um thriller que narra a caçada da polícia em busca de um assassino em série. Como anuncia o seu próprio título (e essa ideia se mantém no título da versão brasileira), essa é a história de um homem, um policial, que, a partir de uma investigação da qual participa, disfarçando-se e inserindo-se na noite gay, perde-se dentro de si próprio, dentro do seu desejo e das suas fantasias sexuais. Ao mergulhar naquela realidade do submundo novaiorquino, ao cruzar fronteiras que separavam aquela realidade do mundo que conhecia, o protagonista parece se deparar com uma face de si próprio que talvez desconhecesse ou para a qual não desse atenção até então. Em suma, ao se aproximar daquele lugar e daquelas pessoas, ao conversar com elas, ao observá-las, ao ouvi-las, ao ser paquerado e desejado por aqueles homens, enquanto está disfarçado, não é de se espantar que o policial Steve se identifique com eles e, ainda que aparentemente tenha dificuldade para confessar e lidar com isso, passe a desejar viver aquelas experiências transgressoras. A volúpia e o desejo crescem em seus olhos. Conversando com o chefe, chega a dizer que o trabalho está estragando o seu relacionamento com a namorada. Desesperado com aquele mergulho intenso num mundo de testosterona, um mundo de homens suados e musculosos, em determinada noite ele volta repentinamente para casa em busca da parceira, com quem faz sexo. Essa sequência parece dar conta de evidenciar um desejo de reafirmação por parte do protagonista – diante da tentação, diante da vontade de ceder ao seu desejo homossexual, ele corre para casa, para o colo da mulher, como se quisesse afastar o que é proibido e que lhe causa medo. Steve seria, assim, um homossexual enrustido? Ou ele se descobre bissexual ao ter contato com a noite gay e suburbana de Nova Iorque? O que aquela experiência revela a seu respeito? Ele estaria escondendo algo de si próprio ou dos outros?
Em verdade, o filme de Friedkin deixa muitas pontas soltas e isso é proposital. O filme deseja confundir o espectador. Tudo começa com a própria identidade do assassino em série. Se prestarmos atenção, veremos que o assassino é interpretado por diferentes atores e é impossível saber, de fato, quem ele é e se, no desfecho, foi realmente morto por Steve, como tudo aparentemente indica. No desfecho, na sequência final, após ter resolvido o caso e ter conseguido a promoção que tanto desejava no trabalho, o protagonista está em casa, barbeando-se. A namorada chega, fala com ele rapidamente e vê, sobre uma cadeira, um chapéu e uma jaqueta de couro, onde estão também um par de óculos espelhados – em suma, é o vestuário típico dos bares gays que Steve frequentara durante a investigação e que vestia na noite quando matou o suposto assassino. Vale dizer, ainda, que o assassino, apesar de ser interpretado por diferentes atores, sempre que aparecia estava vestido dessa forma. Calmamente a namorada de Steve veste a jaqueta, o chapéu e os óculos, numa atitude infantil e que revela certa curiosidade e estranheza. Em seguida, somos levados de volta ao banheiro onde Steve se barbeia e, vagarosamente, ele nos mira nos olhos, olha diretamente para a câmera, como se fôssemos seus cúmplices, como se soubesse que o estávamos observando, como se entendesse o que estávamos a pensar, como se compartilhasse algum tipo de desejo proibido ou segredo. Diante disso, por todo suspense que paira nessa sequência final, é impossível não se perguntar: não será o policial Steve Burns o próprio psicopata, o assassino em série, um homossexual enrustido e homofóbico, que ao desejar matar a sua própria homossexualidade mata outros gays? Isso explicaria todo mistério em torno da identidade do assassino. Numa leitura ainda mais ousada, toda a trama de assassinatos não seria apenas uma espécie de metáfora da tentativa frequente de Burns de sufocar e matar – inutilmente – a sua natureza homossexual? Todas essas perguntas me fazem ter certeza de uma coisa: estamos diante de um filme genial, que brinca com o espectador e para o qual não há respostas e interpretações definitivas. Os espectadores são, sem sombra de dúvida, os verdadeiros “perdidos na noite”.
Há quem diga que Cruising mereça ser refeito, que necessite de uma adaptação contemporânea, desprendida dos tabus que ainda cercavam o cinema e a sociedade dos anos de 1980. Em sua nova versão, talvez pudéssemos ver, finalmente e abertamente, Steve realizando seus desejos, beijando outros homens que conhece nos clubes e vivendo com eles suas fantasias. É uma ideia interessante e com certeza estaríamos diante de um outro filme, com novas questões. O problema é encontrar outro Al Pacino, já que ainda não inventamos uma poção mágica do rejuvenescimento que devolva os quarenta anos ao astro estadunidense. Pensando no olhar de Al Pacino e no modo como deu vida a essa personagem, confesso que não consigo pensar em outro ator, mas com certeza seria possível. Quem poderia dar vida ao icônico e misterioso policial Burns? Enquanto isso não acontece, sugiro um outro filme, do qual inclusive já falei aqui em outro momento, ainda que brevemente: Muerte em Buenos Aires (2014). Dirigido por Natalia Meta, esse fascinante e muito bem-feito longa metragem argentino, também ambientados nos anos 80, é por ora o Cruising dos nossos dias. Inclusive, tendo em mente a paixão e a tensão que se desenvolve entre dois homens, entre o investigador Chávez e o policial Ganso, que vagam pela noite portenha para solucionar um estranho assassinato envolvendo um magnata homossexual, perdendo-se pelos próprios meandros da masculinidade e da homoafetividade, diria que neste caso o título Perdidos na Noite serviria perfeitamente.
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Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno. Mantém uma coluna mensal na revista literária Vício Velho.