ALGUMAS FLORES NÃO COLHIDAS NO ROSEIRAL DE MATILDE CAMPILHO – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


escutar, como se as determinações sobre a identidade do poema fossem rompidas. algo a ser pensado é que um poema não se restringe ao que se fala, mas reelabora a dinâmica autorrealizante de suas imagens, inclusive quanto à constituição de si próprio. quando o dizemos, o poema é perdido. quando perdido, encontramos a cerzidura de sua trama em nossa escuta. perder um poema é algo como estar à frente de seu futuro. enunciá-lo é um quase, rachadura, a temporalidade quântica das frases em gênese. forja-se o desafio de um principado sem realeza ao realizar o plantio dos nomes. um poema fala pela voz do silêncio, e essa voz talvez aconteça quando nos doamos aos pulmões das palavras. matilde campilho interrompeu certa quietude verbal quando propôs um príncipe no roseiral. o estado anímico dessa proposição é tal qual a instalação de nervuras no tronco da respiração. é preciso ouvir o que vem lá. é necessário não colher as maiores flores.

Príncipe no roseiral

Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na beira do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da porcentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registradora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar em casa
ou em algum lugar
próximo de casa.

escute lá. ouça a quantidade necessária de ruídos até que se perca a referência dos estalos. o atalho para o sono é desde quando não houver pálpebras para dizer “isto é um poema”. confere-se à alvenaria dos versos certa quantidade de sensatez. mas o poema não é uma lógica, nem quando tentamos restituir seus assaltos. há quem divirja, sempre há, e ainda bem. no entanto, a construção das imagens pela tirania precisa do cinzel verbal escapa de seu respectivo traço. quanto mais pessoas leitoras existirem, maiores os declives para o rastro do que se esquiva da voz. porque o poema é poema, mesmo quando não traduz o amor ou não trata do enjambement presente na ausência da fala de cachecóis / azuis sobre os ombros / do cantor que suspende um quarto dos seus passos na beira dos rochedos.

escute lá. mire e veja na simbiose dos sentidos o quanto de fuga há no ataque do florete. o peito está sempre desamparado à fatalidade da estocada. não há hora nem rolex que determine o instante em que a bandeirola da federação uruguaia de esgrima flamule ao perguntar pelo poema. nem que o vento a carregue ou que proteja a pele do golpe. sempre se dirá “é isto o poema”, mesmo que se infrinja a execução causalista dos enredos paranomásticos ou se funde a engenhosidade pela escansão dos termos. e ele, o poema, ocupará a deserção de seu próprio conceito.

um poema o é pelo que não se diz. escute. ouça a temporalidade do que restou do lago na floresta americana. drenado desde a passagem da última margem, deixou ver a vontade da nomenclatura. é um poema. isto é, o que na conversa se oculta, ao mesmo tempo, revela um possível verso quando não mais couber a fragilidade das cartas no equilibrado castelo de ausências. a legítima força dos notívagos que pretendem inaugurar a manhã na confeitaria fedorenta exerce ainda um dos estatutos para o aprofundamento da ideia do que significa ser um poema. por mais que não se determine a generosidade do verso pelo hálito da palavra recém-anunciada, a virada do dia está impregnada de noite e a versatilidade da imagem converge para o corte da linha, se ruptura talvez houver.

isto é um poema. ou isto é um desdobramento de poema. ou ainda, um encanto sazonal pela tentativa de incorporação do poema. há mais voz no silêncio do que na pronúncia das preces. embora não se fale de comoções na missa das sete, o alvoroço existe pela constituição da serenidade. restitui-se o poema à sua arquitetura pelo paradoxo ambíguo da escuta. vinga, portanto, a itinerância pela longevidade do verso, cujo limite se indetermina à medida que se permite a implantação dos joelhos nos genuflexórios do corpo. compõe-se da arritmia dos costumes a cadência estrutural da métrica. impossível se medir o peso do ocaso durante a lâmina na barba, mesmo quando não se menciona a porcentagem das mulheres espantadas com seus maridos imberbes. são constatações caras para a libertação do poema e seus desígnios palatais a ruína dessas imagens. poema não se reduz ao que se fala, sobre o que se fala. o dizer poemático provoca a renovação do gesto de se abençoar tudo que se perde da salvação. o poema não salva, nem a poesia.

tudo que puder ser arredondado para caber no que falta em uma imagem contém a pergunta pela constituição dos seres. a indagação o que é isto, um poema? sustenta em si uma perdição, um espelhamento em cujo reflexo se aniquilam as normativas dos vértices. instalam-se as figuras como preceitos de linguagem, a fim de apartar a floresta americana pela não menção de seus tratores quebrados. a quietação em referência à ideia de norte / na cidade dos revolucionários recupera o poema no que ele não diz: choro, virgens confusas, publicitários de cotovelos gastos ou manadas de cervos. mantém-se uma lógica de não referência pela exposição do que fica de fora estando presente. isso porque não interessa uma tal didática poemática para a execução do verso. tampouco se alinham conceitos do tipo liberdade igualdade e fé. não há prática no poema que o repercuta fora da linguagem. a ação de um verbo galopando feito corpo perdendo a virgindade, isto é um poema. por mais que não sirva para ajeitar o cabelo / da menina que trabalha / com afinco na caixa registradora / do supermercado, nem para mais nada que não seja a excitação do que ainda não veio – porém existe nessa iminência –, o poema nada vai melhorar.

mas escute só. há muito ainda que dizer para não conformar o poema num modelo do que poderá ser para os filhos dos seus filhos. falar de amor, de santos, de Deus recai numa mesmice que, deus me livre e guarde, não quero para meus descendentes. o poema é isto: traz as coisas no que elas são, mesmo que o cotidiano seja a mentira mais bem contada, tão necessária a ponto de servir de mote para alguns excertos. talvez por isso o poema não fala do lavrador que dedicou 38 anos a descobrir que sua vida é uma história relida por outro e mais outro. então, ouça. não vai melhorar. não vai melhorar. há um risco de grandiosidade nas expectativas alimentadas pelo futuro, e futuro não há, se for considerado como resposta para salvação. pode haver um ressentimento pela elucidação da mística que nos aponta para a vida e sua necessidade de aflorar na canção entoada, enquanto tal lavrador com pouco menos de 40 anos cumprir a lida diária para chegar em casa / ou em algum lugar / próximo de casa. a estrada nacional 117 efetiva seu estado de isenção alegórica e dá ao poema exatamente o que ele precisa. nada. a estrada é tal qual o poema que tenta ser escrito ou relido. o poema é isto, e existe.

p.s. é quando a gente escreve um poema que percebe o quanto ele nos leva e o quanto dele deixamos. ou não sobra nada ou coisa alguma é dita, não tem meio-termo, é sim ou sim. um tanto paradoxal dizer isso após a leitura de um poema que abre mão dos acontecimentos marcantes, imensos, e traz para si o ínfimo do cotidiano, as coisas meio sem importância para espetáculos retóricos. talvez seja nesse não dizer que o poema se realize. sem grandes evoluções ou molduras para imagens absurdas, o poema é sempre andança. acordar para um café, o vazio lá fora, os acontecimentos sem alarde do mundo, as coisas importantes ou não. isso tudo é poesia e pode fazer nascer poemas por navegar habitações na gente, e cada um se põe a observar de um modo peculiar. talvez a radicalidade de um poema esteja no que ele deixa de dizer, e o que se carrega para dentro dele esteja na perspectiva do que realmente importa para ser coisa alguma na ordem dos noticiários. a suposta desconexão do título com o corpo do poema diz muito de algum assunto ou coisa alguma, vai saber… o lugar do compromisso descompromissado entre título e o desenvolvimento poemático sugere o caminho para onde ruma os enquadramentos imagéticos, ou a suposição deles. o lugar do poema é este que desencadeia outras instâncias, penso. então, importante sobremaneira é mesmo o que fica no entredito do dito e do não dito. “Príncipe no roseiral” foi publicado no livro Jóquei. primeiro em Lisboa, pela Tinta-da-China, em 2014, e depois aqui no Brasil pela Editora 34, em 2015.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.