NUNCA ESTIVEMOS NO KANSAS – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


Em meio ao caos e à luta, celebremos as conquistas: meu primeiro livro de contos, chamado Nunca estivemos no Kansas, será publicado pela Patuá, uma das editoras independentes mais aguerridas e de mais qualidade em catálogo e projeto gráfico no Brasil hoje (na minha — agora suspeita — opinião).

Enquanto o livro não vem (deve sair até dezembro), compartilho aqui o conto que dá título ao volume, lâmina em fermentação dos nossos tempos.

Nunca estivemos no Kansas

— Deixa os caras

ele diz, e não consigo pontuar sua fala, entre a ordem nítida e talvez algum medo. Levantado contra o sol, na praia que de muitos modos fermenta como intestinos, é difícil distinguir seus traços sobre o corpo largo, mesmo a poucos metros. Estamos sempre tão perto no verão desta cidade.

Antes: eu já notara o grupo de garotos, bebendo e falando alto, a zoeira preenchendo os abertos feito o calor, sem clemência. Pareciam querer desafiar a própria tarde, quixotes carregados de ímpetos nem tão cavalheirescos. Fermentavam também. A vários momentos, um bordão revinha às bocas, entre gestos inquietos: que eram filhos do sujeito. O presidente, aquele. Altos brados e risadas: Filhos dele, filhos do sujeito!

Eu oscilava entre mim mesmo e o redor. Como sempre, como tantos, talvez.

A dança caótica das moléculas do universo: perto, então, da molecada, chegam dois homens, com uma criança pequena, guarda-sol e o acaso mesclado à areia dos tornozelos. A zoeira se insinua, desenhando diante de si, daquelas moléculas de carne, ossos, músculos e pele, um alvo mais palpável que os átomos gasosos do céu azul. Provocam, tom acima a tom acima. Os homens a princípio não parecem perceber, entretidos consigo mesmos, a criança e sua língua estrangeira. A molecada insiste, chama-os assobiando, e quando olham: um requebra-se em trejeitos, emendando com socos batidos contra a palma da mão, imitações de chutes, rasteiras, antes de encerrar sua performance rumo aos tapinhas e risos dos companheiros, repetindo aos brados: Filho dele!

No mais das vezes, hostilidade não requer tradução. Os homens falam entre si, mais baixo do que faziam antes, e olham em volta: como quem busca. Tudo tão perto e tão veloz nesses verões. Feito aumentassem a aposta, alguns dos garotos se juntam em pé ao mímico da vez, já sem nenhum trejeito: saem da própria roda, encarando agora mais de perto aqueles desenhados em alvo pela fermentação dos ódios, dos desprezos, do escuro que em alguns de nós subsiste ao mais potente sol. Os queixos se erguem, sustentando rostos afiados em desafio.

Um deles posta-se resoluto frente ao grupo. Outros dois avançam, passos pequenos, meneando as cabeças pra cima e pra baixo. Talvez os homens, certamente a criança, não entendam a frase com que todos nesta cidade legendariam o gesto: qual foi?, mas o gesto em si dispensa legendas em qualquer língua. Então:

— Deixa os caras

ele diz, por sobre o zumbido da praia fermentando. Em outro con-texto eu provavelmente tivesse desviado o pensamento, à deriva (: preciso fazer feira, ou: que horas são?, ou: e aquela vez em que Seu esperma tem uma cor estranha / É o remédio pra vermes, ou: etc. etc.), mas já não oscilo. Atento. É preciso, às vezes. Ele também, eu sei, gostaria de apenas submergir e abafar as vozes dessa tanta gente espalhada sobre a areia, a terra e o asfalto do mundo. Mas é preciso estar atento. Forte.

(Lembro lutas que não vivi: a mesma praia, anos antes, valentões espancando um rapaz aos urros de Viadinho é daqui pra lá, e ninguém se levantou pra defender o quase menino, não deixar aquela linha urrada a vozes de espuma rábica cicatrizar-se; Stonewall, outra latitude, tempo ainda mais pretérito, agredidas em levante contra não só braços e pernas e cuspe mas cassetetes e armas e fardas e a força que demos às polícias de toda parte desde antes de nascermos, como um pacto que não fizemos, mas espera-se que obedeçamos. É preciso lembrar. Atentos.)

A porra do tempo alongado, esticado feito fronteira: o que há de haver daqui, deste momento agora, pra lá, pro depois? A espera em si mesma como observando do alto: se a linha do tempo vai explodir ou afrouxar, (re)acomodando-se nas areias quentes. O instante (mais que os homens) feito lâmina a decidir se arremete contra as carnes ou retorna à bainha. O tempo fermentando.

E entorna. A porrada come: levanto-me e corro. Não pra longe, mas pro dentro da confusão. Nunca estivemos no Kansas, Dorothy.

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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.