coluna | palavra : alucinógeno
poesia ocupa e é ocupação. o lugar e o meio do vocábulo na sintaxe armada entre os nós dos corpos e seus esteiros. de algum modo, a gente pensa, a palavra é a estiagem da linguagem (quando cessa a ressaca do poema) ao mesmo tempo em que é tempestade, rebelião. aqui uma tal delicadeza é proposta, com a qual soa o alcance do verso ou linha na violência metalinguística em nós que amamos errar concertos. a busca pela palavra no poema, um grande dilema a ser perseguido. seja por desarranjo métrico, corte preciso ou impreciso, atenção à respiração que dita o ritmo do verso, a procura é sempre intensa. estar ciente da linguagem na aprendizagem de seus erros, uma aventura. talvez seja algo como surto psicodélico, frontal com fanta, pôr do sol sem roupas, poema que a gyzelle escreve, como este:
língua
algo me escapou,
mas olha a poesia
soando mais simples alcançar
assim a palavra
algo do imprevisto
fez gesto dentro do corpo
e eu fiz tremer o gesto
feito se por espanto
revelar a delicadeza
ainda no berço crescida,
você já viu a traça quando encontra a luz?
e há quem diga sem temer
que as cascas estão à venda
que a faca é feita de corte
que o corpo é estado
você já viu o silêncio?
quando os olhos carne viva
a manhã em frente
o verso se retorce
inocupado
ainda somos os mesmos ausentes
que ousam sentir
o pavor da linguagem
aqui reparo que o lugar da alucinação é o da palavra. o poema ruindo a expectativa de uma crítica mais ou menos arrumadinha. a gyzelle arranja a imagem quase presa à língua, tal como limite da saliva ao se provar o capricho do que escapa. mas olha a poesia. olha como ela emana, soa simples ao alcançar a palavra. em seu poema, linguagem, língua e palavra se acometem numa correlação entrante, uma na outra, uma para outra, uma pela outra. dá para se pensar também na correspondência entre poesia e poema, e o que escapa no poema é parte do que não se pode dizer. o lado inacessível da fala como enigma na escrita.
algo do imprevisto / fez gesto dentro do corpo / e eu fiz tremer o gesto / feito se por espanto. um tanto de incorporação acontece nesse rito de transpor o assombro para o que nos é interior. corpo quando se olha de perto redunda a concreção do que seria sólido para a ambiguidade de dilemas verbais. o que me leva a pensar estarem o espanto – seu impacto – e o imprevisto atados à disposição de abertura para experiência do poético na linguagem ou, indo ainda mais fundo nas entrâncias, do poético e da linguagem como copertenças para revelação da delicadeza. por sua vez, a ideia de delicadeza se amplia. deixa de ser sinônimo de fragilidade e passa a integrar, ou melhor, a assumir um certo âmbito disruptivo no poema.
a doçura presente na sintaxe imagética não é abandonada, mas proposta ambiguamente. queria eu ocupar a distensão da delicadeza para além do gracioso e ser violência, como palavra exposta desde a boca que explode num palavrão até os lugares mais impossíveis alcançados por um beijo. ao poema se destina a liminaridade de fazer quem quer que seja ocupar a transição entre o tempo de crescimento no berço da leveza e a luminosidade desejada pelas traças. digo ainda sem temer que as cascas estão à venda / que a faca é feita de corte / que o corpo é estado. se você disser que aqui se escreve às avessas, engana-se. não se trata da mística das revoluções, tampouco do anticartesiano espaço de indecisão.
ocupa-se. resultado não é final, nem resultado é. há, isto sim, a concomitância entre o aparente e o acontecente, do corte sendo não o efeito da afiação da faca, mas sua origem, existência e constatação. ser estado seria ocupar o particípio não como passado, e sim como participante da vigência de tudo que é enquanto está sendo. o corpo é estado. é como tem ficado no tempo, estando. estado talvez seja também o que fora permanência nalgum intervalo de estâncias – instância (e não há gerúndio que dê jeito).
mas permanência não é uma condição tão apropriada para ser atribuída a corpo. seria como considerar a pergunta “você já viu o silêncio?” um absurdo. se corpo é movência tanto quanto conservação, e silêncio não significa só ausência, o contrassenso está na lógica do estado razoável das coisas. vejo o silêncio do mesmo modo como, por exemplo, a música faz de mim acorde. então, no visto mora a promessa do que virá a ser, além de revelar o instante transitivo da presença. com os olhos, agarro o provisório da visão em carne viva. haja drummond para tantas retinas fatigadas, haja poema que recebe da linguagem o lugar em que se exerce a contorção do verso. noite consumida, a manhã em frente e as imagens comparecem à história desse canto narrado ante o medo.
ninguém esperava por essa, mas talvez seja por aí a encantação do espanto. o improviso ao se desfazer no susto a certidão do assombro. eis a hesitação singular de quem se põe à mercê do ritmo, que espera da linguagem o próximo verso, ou da voz a camuflagem, que se torna aprendizagem. há nisso um pacto com a perplexidade. a percepção de que em nós o poema acontece quando estamos suspensos, quando ainda somos os mesmos ausentes / que ousam sentir / o pavor da linguagem. esse estremecimento faz do verso o abrigo para tantos quantos forem os refugiados do ego. mesmo retorcido ou inocupado o verso, a poesia ocupa e é ocupação. o poema delonga a escuta para o corpo, e a delicadeza se revela enquanto nasce, ela mesma e própria. ainda somos os mesmos que ousam sentir, ainda estamos à procura da palavra que escapa.
p.s. o poema “língua” faz parte do livro o que fizemos das nossas delicadezas, de Gyzelle Góes, publicado pela Folheando em 2021. acho sempre um desafio escrever sobre língua e linguagem. diria que, na verdade, não é sobre, e sim a partir de. acredito nisso como exercício legítimo de apropriação do que não seja possível conter numa dada extensão mensurável. por mais que a gente pense linguagem e faça da língua nosso corpo, creio que o mais próximo a que chegamos de uma ou de outra seja exatamente o que escapa quando dizemos uma palavra, ou quando tentamos nos iludir ao considerar que colocamos uma palavra no poema. acho que a Gyzelle foi certeira em sua proposição. digo ainda que, para além das afetações morais, do antagonismo dos saberes, o que há é dissimulação; e esta se dá como o jogo entre aquilo que simultaneamente se mostra e se oculta ao se mostrar. tal como a palavra acontece, penso.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.