Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
Você. Sim, você. Como se sente diante de um texto que já principia deste modo, dirigindo-se sem volteios a quem lê? Em seu novo livro de contos, do amor e de outras tristezas: histórias de violência e morte (Ed. Urutau, 2021), Rodrigo Novaes de Almeida se vale deste recurso logo na primeira narrativa, tragando-nos para dentro do que se conta, testemunhas rente às palavras de um universo de becos sem saída, falhas de caráter e dores espalhadas / entranhadas em treze histórias curtas.
Não se trata de um recurso isolado, nem gratuito. Aqui e acolá — como no uso do gênero epistolar em “Carta para vovó”, na dubiedade camarada da expressão “Dizem que…” com a qual inicia o conto-título, ou no tempo presente de “A primeira vez de um homem” — o autor vai habilmente reforçando a sensação de estarmos mais próximos aos personagens do que é habitual, o que intensifica o impacto dos textos. Haja vista o quanto nossa literatura já se lambuzou no retrato de violências urbanas, transitando entre figuras à margem e boas famílias para expor brutalidades, preconceitos e desigualdades sociais e particulares, detalhes de construção como esse mostram-se fundamentais para alcançar um conjunto com força bastante para não ser mais do mesmo.
Você me acompanha? Está prestando atenção? Consegue perceber outras arquiteturas nas cerca de cinquenta páginas do livro, se já o leu? Pois há outras, atuando de formas diversas para nos inquietar. Ainda no conto inicial, “Todos os infernos do mundo”, temos um final um tanto enigmático, e um jogo intrincado de foco narrativo (afastando-se em alguns momentos da protagonista — você — para se deter em outras personagens), que desestabilizam uma leitura viciada em estruturas comuns. No conto-título, talvez o mais pungente do livro, relato de amor/desamor incrustado em páginas ásperas, os verbos quase todos no tempo futuro criam um moto-contínuo que perpetua o vazio da história.
Ah sim, mas e as histórias? Bom, já se disse que em literatura importa menos o que se conta do que o como — você concorda? O mosaico traçado por Novaes, e que abarca seu livro anterior, o ótimo Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie, é um serpenteio por esta sempre pertinente máxima literária. Alguns contos trazem a originalidade que instintivamente buscamos na ficção, enquanto outros soam mais batidos. É a linguagem que faz a diferença.
Isso que chamo de linguagem inclui tanto escolhas mais estruturais, a exemplo das que mencionei, quanto lexicais: quais palavras e formas sintáticas são usadas por narradores e personagens. O livro aponta claramente uma busca pela concretude da vida contemporânea, o que se desdobra nos temas, estruturas e tom geral da escrita — síntese disso é o diário de um tratamento médico espinhoso em meio à pandemia de Covid-19, que encerra o volume retomando o você-vocativo do texto de abertura, com um rodopio ao final puxando-nos vez mais para dentro da obra.
Quando a estrutura se destaca e a linguagem cotidiana é bem dosada, os textos brilham —especialmente, claro, nas histórias mais inventivas, como “Puta”. Todavia, em alguns momentos, o tom prosaico demais (lembremos que narradores em terceira pessoa permitem um tempero de linguajar dissociado da realidade dos personagens), certas repetições ou excessos de palavras que mereceriam uma limada impiedosa, somados a enredos menos únicos, acabam por diluir o impacto de bruteza ao rés da retina que nos acompanha a maior parte da leitura.
Ainda sobre linguagem, há outro aspecto interessante: a relação entre o léxico de personagens e narradores. Pode ser neura minha, mas ando muito atento a isto ultimamente (e você?). De modo geral, personagens precisam falar de maneira adequada a seu contexto, enquanto narradores (que não sejam personagem) têm mais liberdade. Uma diversão minha é reparar os vazamentos entre as sintaxes. Em “Carta para vovó”, que se desenrola como uma carta escrita por uma menina de onze anos, a colocação pronominal impecável (até as crase estão no lugar!) causa estranheza — é uma sintaxe do narrador, que aparece no começo e no fim do texto, não da garota. Já no conto seguinte, “Cachorro-Louco”, é a personalidade fragmentária do protagonista que se reflete na sintaxe do narrador, mas aqui funciona.
Você. Volte ao começo — mas não literalmente. Voltemos juntos, no rodopio das últimas frases do livro a nos remeterem ao prefácio, do próprio autor. Questões que abordei acima são de alguma forma explicitadas nesse texto introdutório. O entrelaçamento que Rodrigo faz de sua realidade pessoal (diagnosticado com câncer ao mesmo tempo em que o coronavírus aportava no país), nossa realidade coletiva e sua literatura funciona como mais um elemento a realçar a proximidade entre ficção e não-ficção, embrenhando autor e leitores nas narrativas, sem cair em qualquer pieguismo. Mas se você me permite uma dica, não leia o segundo parágrafo do prefácio. Vale a pena descobrir por você mesma/o os entrelaces puramente ficcionais que conectam personagens de diversas histórias ;-).
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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.