EFEITO ULISSES – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


 

A orla do perigo, a margem da segurança, a iminência da vitória. Muita calma nessa hora.

O herói Ulisses é conhecido pela astúcia, pela prudência. O ardiloso Ulisses. O sutil Ulisses. Divo. Muso. Por isso mesmo é significativo que ele, logo ele, baixe a guarda em certos momentos, e se exponha a riscos desnecessários. Dizer que isso acontece porque a estória tem que render, que isso atende a necessidades dramáticas, está certo, mas não invalida outras abordagens do assunto. São razões sobre razões. Vamos olhar, rapidinho.

No episódio do ciclope, Ulisses sai vitorioso graças a seus engenhosos estratagemas, a seu autocontrole, a sua capacidade de esperar a hora certa, de, uma vez atingida essa última, agir sem hesitação, de sacrificar recursos no início para não arruinar as chances no final. Quando ele e seus companheiros já estão na embarcação, quase em segurança, quase fora do alcance do raio de ação do ciclope, que está cego e derrotado, mas vivo e fulo, o ardiloso Ulisses não resiste à tentação de achincalhar o gigante de um olho só, chamando o monstro (físico) de monstro (moral) por ter devorado hóspedes.

O ciclope Polifemo, guiado pela voz do inimigo, atira uma rocha. Ela cai pouco à frente do barco, gerando ondas que o fazem retroceder para a praia, onde o monstro monstro poderá esmagá-los ou apanhá-los outra vez. Por pouco Ulisses e os seus escapam, remando a plenos braços, na força do medo. Voltam a se aproximar da segurança. O prudente Ulisses, não satisfeito, reincide na imprudência. Não só reincide, como a amplia e aprofunda, embora os companheiros ao redor lhe sussurrem, segundo o texto clássico de Homero, em livre tradução:

“Silêncio senhor, nós suplicamos!
Tás pensando que és Aquiles?
Visse o final que ele teve, alhures?
Vós já escolhestes a vida e as mulheres,
não a glória eterna e seus prazeres,
sem embargo dos memoráveis feitos teus.
Não te sentarás à mesa dos deuses,
embora favorito sejas daquela deidade
que dentro em séculos será reverenciada
num templo que se chamará Partenon.
Descer ao Hades após os adeuses,
eis o teu destino, e o nosso.
Com todo respeito, ó rei de Ítaca,
deixa de teu agamenon!”

Mas ele estava descontrolado. A altos brados, Ulisses se identifica e vangloria, informando o nome do pai, a terra de nascença, a rua e o número do palácio, com CEP. Isso terá funestas consequências, para deleite dos leitores de muitas épocas. Por ora veio outra pedra, maior. Dessa vez só não deve ter acertado porque Ulisses tinha as costas quentes, apadrinhado de Atená que era (no Brasil ninguém ignora as vantagens de um padrinho forte).

Noutro episódio, pouco adiante, Ulisses & Cia estão na iminência de retornar à ilha natal, e chegam a vislumbrar, do mar, as próprias casas, com fumaça saindo das chaminés, ursos pulando pelas janelas, após mais de dez anos de exílio, guerra, peripécias! Ó mar salgado, quanto de teu sal são lágrimas de Portugal? Não sei a resposta, mas certamente a Grécia entra com uma boa cota nessa multinacional. Pois justamente nessa hora, por exemplo, o prudente Ulisses relaxou mais do que devia, na iminência do êxito, e dormiu um soninho.

Seus companheiros, que vendo uma desgraça achavam engraçadíssimo desencadeá-la, abrem um saco de propriedade do chefe onde julgam esconder-se um tesouro. Iam ali, na verdade, ventos diversos, e a tempestade que se arma os afasta de Ítaca ainda uma vez. Ulisses desperta: Inês é morta. Nesse momento, avaliando a qualidade de companheiros com que fora se envolver, ele pensa:

“Ó coração meu,
pisei em rastro de corno
ou peguei em bomba?
Dei na minha mãe pra merecer
uma cambada de vacilão dessa,
podres todas as uvas de um cacho?
Assim falou MC Troia:
‘todos os meus planos foram por água abaixo’”

Considera seriamente o suicídio, pensa que comparado a ter aqueles sócios era até doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar, mas o sabor de uma lágrima impressentida o desperta do devaneio. Precisará degustar uma nova série de dissabores antes de botar o pé em casa e finalmente assassinar com toda a comodidade os não sei quantos pretendentes de Penélope.

Em ambos os casos, o matreiro Ulisses peca no momento em que se encontra perto, muito perto de escapar do perigo e triunfar. Eis uma verdade psicológica, uma constante universal da alma humana. Quando estamos perto de escapar do perigo, perto de alcançar a vitória, tendemos a baixar a guarda, relaxar por antecipação e até comemorar o prêmio ainda não alcançado; morremos na beira da praia. Até pelo temor patológico de realizar o próprio desejo. Quantas vezes os amantes do futebol pernambucano ao redor do pálido ponto azul viram o Náutico entregar o ouro quando tinha um campeonato nas mãos? Ou mesmo esse time menor, a seleção brasileira, em tantas ocasiões. Ora muita ansiedade, ora muita folga. Falta regulagem.

Mas não é esse o paralelo com que pretendo concluir e deixar de aporrinhá-los. Trata-se sim da relação entre esses episódios fantasiosos imaginados há uns três mil anos e o momento particular e coletivo que vivemos. A curva de contágio andou declinando? O clima é de certo otimismo sanitário, apesar apesar apesar do que nem precisamos dizer? A luz da saída do túnel começa a magoar nossas pupilas? Um sorriso se esboça enquanto uma lágrima furtiva traça seu caminho previsível-imprevisível no tépido e justo manto da pele? É aí que mora o perigo. Calma, muita calma nessa hora. A pandemia não acabou. Ainda estamos no raio de ação do ciclope, Polifemo. Ainda não retornamos a Ítaca, e nenhum de nós sabe se é o Ulisses dessa estória, se há um, para ficar vivo e quem sabe contá-la ao pé da lareira crepitante. Preservar a vida. Observar as medidas de segurança. Resguardar-se de shows, estádios, boates, pagodes. É preciso dizer: tomar a vacina. Usar máscara sobre esta outra máscara engenhosa, o rosto. Essa é a nossa única rota de volta para o futuro. Ainda não é hora de xingar o monstro, e se cochilar o cachimbo cai, ou alguns alguéns abrem o saco de ventos de Éolo e o barco pequeno em que todos estamos naufraga.

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.