V – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


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envelheço — enquanto tento
não envilecer — não tanto

não tenho o viço
de outra vida — seiva
fluindo — fortalecendo
folhas novas, minhas e
de si próprias — filhos?
dentre muitos vícios
deste me abstive

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na noite da grande expropriação
— palavra mais revolucionaria
que roubo —
de N agências bancárias
na pacata Araçatuba

minha avó a poucos metros
de toda a treta e tiroteio
trancada em casa mais pacata
que a cidade em meio
à pandemia (dos infernos)
sem whatsapp nem redes
(felizmente) alheia
à expropriação do tempo
que lhe resta

sentada na poltrona
conversando com as plantas
costurando uma colcha
(para a bisneta não nascida)
relembrando quando
se apaixonou pelo vô
em pé à pia da cozinha
a beber do filtro de barro
feito lembrança morna
frente ao espelho do banheiro
esquecendo a cada segundo
um pouco mais sobre a infância

dentro da noite entrecortada
por rajadas de estampidos
pareceu tudo a seus ouvidos
apenas bombinhas da prefeitura
para espantar rolinhas da praça

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viver é um gerúndio
até o infinitivo

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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.