BARATAS NA CASA DE MARÍLIA VALENGO – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


tem aqueles poemas que falam tão forte que nos fazem querer ter voz dentro duma multiplicidade personativa. que nos fazem querer transpor os limites do corpo, da figura de um gênero, da prática intercambiante de existências. há poemas que ficam ricocheteando em nossas lembranças desde quando os ouvimos ou lemos, e é como se eles sempre estivessem lá, muito antes da soleira de nosso choro ao nascer. chegam a nos tornar um estranho gosto no paladar de quem nunca provou o elemento quente do próprio suor. sei não… a força de um poema é algo sem tamanho nem lonjura, só vai e nos leva junto. como este, da marília valengo:

até as baratas estão grávidas

as árvores espalham seu pólen
fertilizando aqui e onde nem se imagina

daqui aonde a vista alcança
os pequenos grãos voam
e caem para germinar

um espirro é o aborto de uma árvore
que poderia ter sido

meu sangue também é
todo mês
o que poderia ter sido

tenho sido muitas
em 30 dias
milhares batem à minha porta
a casa está lotada

levanto os lençóis
reviro as caixas e tomo um antialérgico
penso como silenciar metade delas
desconvidar as que sobrarem
e esperar que fique a que dê menos trabalho
a que não pensa na barata grávida
que acabou de matar

a que vai dormir sem se importar tanto
com as ruas sujas de pequenas flores
com o vento soprando sei lá de onde

tudo indica uma nova estação
e as crianças aproveitam bem o calor

as crianças estão em toda parte
menos aqui.

até. uma das maneiras pelas quais a ideia de limite pode ser expressa na conjuntura tempo-espacial é pela palavra até: até quando, até onde, até sei lá o quê. vezes há que junto a esse limite se agregam nomes: até as baratas. nesse momento, a extensão se alarga para uma exclamação de espanto, sem deixar de acrescentar um tipo de enumeração incorporadora do assombro (num misto que enlaça complexas fronteiras), tais como o limiar entre o desalento e a resiliência, a perversidade e a corporeidade, a animosidade e a maternidade, a extinção e a nascividade. dizer “até as baratas estão grávidas” é uma inclusão excludente tanto quanto uma exclusão includente. até as baratas, mas eu, eu, talvez não. a reciprocidade que há na numerosa existência desses insetos reflete a uterina vigência para a possibilidade de ser mais, de ser outro, outra.

o até se expande e se oculta no que desdobra enquanto raízes, por sua vez, redobradas em pólen. fecundação também se chama encontro, quando o encaixe orgânico implementa o devir do que nem se imagina, inclusive para além das possíveis detenções apenasmente biológicas. mas as árvores espalham seu pólen / fertilizando aqui e onde nem se imagina. as árvores estão até onde as vistas alcançam ou se ocupam dos olhos fechados. estão no futuro do pólen, são o caroço da fruta escondida para a fome de mais tarde. árvores espalham a provocação dos espirros, os narizes vermelhos – ocultas no futuro dos pequenos grãos que voam / e caem para germinar.

o até elabora circunstâncias e tem completude no conceito da preposição. é aquilo que se põe antes, que liga elementos. como advérbio, faz morada no que é dentro, na temporalidade do ainda. não é à toa que está no âmbito da fecundação, tal como a catarse das narinas no complexo respiratório instalado para a revogação do que viria a ser. lembremos: um espirro é o aborto de uma árvore / que poderia ter sido. aquilo que está por vir em alguma dimensão foi ou é ou quem sabe será o que poderia ter sido. parece impossível fugir do circuito morte-vida presente no que é respiração, do que é ciclo. o itinerário do meu sangue também é / todo mês / o que poderia ter sido, e se celebra o futuro na consternação do que não foi ainda.

mas esse papo todo de “até” sendo isso ou aquilo, do encontro gramatiquês entre preposição e advérbio e das fronteiras instauradas por suas rupturas não é uma desculpa para justificar um lugar confortável ou ratificar uma instância respaldada pela distância teórica de uma proposição. falamos aqui de fecundidade. verbal, emocional. assim como também de um tipo de contracepção, seja imagética ou fundadora duma paradoxal vontade criadora/criativa. somos cúmplices da barata que ao morrer deixa escorrer um ovo de seu corpo e de como isso faz pensar ou rever o destino sobre o qual não há domínio algum. seja toda essa trama talvez o resultado da diversidade de vidas habitantes de uma mesma existência, afinal tenho sido muitas / em 30 dias / milhares batem à minha porta / a casa está lotada.

as baratas se tornaram um tipo de metáfora para o que se chamou aqui de preposição ou advérbio. prolongam-se no interstício entre duas lacunas ou propagam as circunstâncias de tempo à intensidade, passando pelo modo (uma figuração de espaço-enquanto), indo da afirmação à negação, mas prevalecendo a dúvida como ponte para outros patamares quânticos. por mais que se revirem caixas e se provoque a ingestão de toda sorte de antialérgicos, ainda que se pense em silenciar metade delas / desconvidar as que sobrarem / e esperar que fique a que dê menos trabalho, as baratas se tornaram superiores a um mote para poema. integraram uma história, cuja procura pelos próprios desdobramentos em vida – dado o desejo de coabitar o sonho de um futuro nome – desencadeou uma perspectiva de longitude interna. uma casa tomada de baratas é mais que uma imagem a ser arranjada num verso, e nos faz pensar no sentido da habitação, no quanto de baratas há em nossas paredes. o importante talvez seja não pensar na barata grávida morta há pouco.

um tal corpúsculo que ficou de herança para o chão e seus passados ou para o futuro bem-vindo de sua suposta eternidade (prefigurada pela multiplicação que realizam). morrer deixando uma vida exposta, dormir sem se importar tanto / com as ruas sujas de pequenas flores / com o vento soprando sei lá de onde. seria algo como perguntar quem de nós comunga dessa gestação para além de nossa barriga. uma gravidez proeminente na coletividade das casas compostas por tantas paredes e viagens. não há lugar tão incoerente quanto as marcas deixadas pelos pés no tempo. eles são a dubiedade da unidade corporal, já que apontam em direções aparentemente iguais sob a tentativa de equilibrar o peso durante o movimento. mas para onde se anda tanto? o que se procura? quem de nós há no você que se aproxima pelas distâncias, criança?

pela descontinuidade polinizante dos ventos, parece que haverá uma nova estação. é o que tudo indica. os risos outros, os abraços, a espera pela chegada dos mais velhos. crianças. elas aproveitam bem o calor. e a vontade de terminar essa conversa com o final de um poema é grande. mesmo que se arrisque uma revisita à famigerada ideia de plágio, ou, como alguns podem preferir, à incorporação pela leitura, pelo diálogo. do até como fronteira à barata como metáfora. do coletivo ao comum ou vice-versa. viajar como estar no mesmo lugar, só que em movimento. ficar no agora, ainda que o instante não seja reprimível. o ovo eclodindo. as paredes cheias. as caixas. as mudanças. difícil pensar num final com esse falatório todo porque

as crianças estão em toda parte
menos aqui.

p.s. fiquei dias pensando em como trazer esse poema para meu corpo. como fazer do meu corpo um possível instante para um corpo que não é meu. como, sem querer brigar com as falas ocupantes de lugares, ser/habitar a possibilidade genuína que a poesia, a literatura, a arte conferem, no sentido de desocupar o visível apenas aos olhos. enfim, a discussão é bem longa… e é também um modo de dizer que depois desse poema passei muito tempo pensando em como não falar dele, porque já era, ele está aqui dentro. “até as baratas estão grávidas” integra o livro grito em praça vazia (7Letras, 2020), de marília valengo.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.