Coluna | Sentido
Uma vez fui vendedor de enciclopédias. Primeiros anos do século XXI, esse já se tornara um mau negócio. Havia internet. Vendas feitas com sangue, suor e lágrimas caíam menos de uma semana depois, tínhamos que estornar o dinheiro. Arrotar, no jargão. Um transtorno. E apesar do tédio da permanência em stands nos shoppings, dos sentimentos ambíguos envolvidos em promover falsas exposições de arte feita pelos alunos em escolas inclusive públicas, do cansaço de palmilhar avenidas, ruas e becos da metrópole, da via crucis do corpo nos ônibus lotados e nós embalados em paletós vagabundos, da necessidade de fazer dinheiro, algum mísero dinheiro pra começar, que nos afastava de felicidades clandestinas, apesar dos perigos da cidade sitiada pela cidade ela mesma, de tudo que nos impedia de perguntar como nasceram as estrelas, a mim e a meu amigo Caio Vianna que sonhávamos ser estrelas, o acaso me propiciou alguns encontros interessantes, um ou outro sopro de vida.
Especialmente senhores de cabeça branca tinham boa disposição para interromper seus passeios e ouvir-me dissertar sobre a excelência daqueles livros ciclópicos. Esse era apenas o ponto de partida para variações sobre política, economia, teologia, física e metafísica, presididas por eles. E muita nostalgia, muita quase-ficção, muita quase-memória, muita quase-verdade, muita fábula involuntária. Um desses interlocutores, que apreciava literatura e perguntou em tom de charada quem era gênio, Rui Barbosa ou Castro Alves, pergunta à qual dei a resposta certa, contou-me então que fora gari no Rio do Janeiro e certa vez comparecera ao lançamento de um livro de Clarice Lispector. Não sei se compareceu ou estava no lugar certo, na hora da estrela.
– Ela estava fumando muito – disse-me fazendo uma mímica de goias de cigarro ao redor –, com aqueles olhos rasgados, loira, elétrica.
Não pude duvidar do relato do homem depois daquela descrição, o ar, a pantomina com que a fez. Eu de minha parte assevero que essas foram as palavras dele, exatas, e espero que vocês acreditem, ou declaro-me magoado. Ficaram-me tatuadas, as palavras do gari aposentado, como uma dessas grandes mágoas indeléveis.
Vendo-o em seu macacão sujo, Clarice o chamou (imagino a cena, o gesto, o olhar, a expressão corporal, o vestido, a postura, a luz, o ângulo da luz, o ângulo a partir do qual contemplo tudo) e deu-lhe de presente um exemplar do livro lançado naquela ocasião, que o senhor que aquele homem seria guardaria até o dia em que me transmitiu essa estória, pois uma estória dessa não se meramente conta. Isto é uma relíquia, um fetiche, um artefato, um camafeu de fato. Minha memória diz, aqui inconvicta, que era A maçã no escuro, essa candeia bruxuleante na grande noite da alma humana.
Perguntou-lhe o nome, ele, de tão nervoso – gesto de tremer –, respondeu apenas:
– Gari.
Clarice então escreveu a dedicatória nesses termos:
“Para o meu gari”
Havia gente, havia a fila, havia os jornalistas, havia a consciência de ser mero gari, mas talvez, pari passu, par e passo de dança, a de ser o gari dela, dela, dela, deliciosamente. Deu-me na veneta agora procurar fotos desse lançamento, acho uma em que ela está ao lado de Tom Jobim, com um dos queridos braceletes que, a acreditar em Marina Colasanti, e acredito, serviam sobretudo para sublinhar-lhe a beleza das mãos, isolá-la, glamourizá-la. Orgulhava-se delas. Mas gostava muito dos cigarros, fumava antes de dormir. Isso é outra estória. O vestido, na foto com Tom, parece ser branco. Está errado. E ela faz um ademane de palma voltada para cima, com pouco exagero à Carmen Miranda, na direção da pirâmide de exemplares do novo livro, como uma moça num programa de auditório o faz para o produto de um dos patrocinadores, como um mascate no bairro da Boa Vista, Recife, como uma vendedora exibindo sua pirâmide de pitombas no bairro de São José, Recife, onde ficava (ainda fica?), o escritório da Barsa. O gerente Willamis nos acenava e seduzia com a possibilidade de sermos campeões de vendas e ganharmos passagens para viagens em transatlânticos, a descoberta do mundo. Clarice como uma vendedora de enciclopédias, algo como Cleópatra de guia turística no Cairo. Fazíamos pilhas parecidas com os tomos, elegantes, espiraladas. Fazíamos e desfazíamos, fazíamos e desfazíamos.
A essa altura nosso gari se foi do lançamento, da efeméride, entre cabisbaixo e eufórico. Quem disse que saímos do amor como de um fogo de artifício, tristes e aborrecidos? Ah, foi Machado. Um personagem de Machado, num conto. Resolveu beber, chegou em casa carregado nos dedos róseos da aurora, úmido, mole e desfalecido como um nenúfar, uma água-viva. Onde estivestes de noite?, quis saber a mulher, não acreditou. Essa parte invento. Quem conta um conto… A mim sempre se impõe o devaneio. Me obumbro em pleno dia. Meu irmão diz “A luz tá adentrando a alcova, é?”. É nossa cifra doméstica para o ato de escrever ficções, que lá em casa ele inaugurou.
Aqui estamos num corredor do shopping Guararapes, o jovem vendedor de enciclopédias e o gari aposentado de Clarice. Ele pesa muito mais, veste um uniforme verde-radioativo, fosfóreo. Diante de mim volta àquele dia, e daquele a este, que não é mais este, ao qual volto, como se fôssemos elétrons saltando de órbita em órbita, para perto e longe do núcleo, o coração selvagem da vida. Ele repete o teor da dedicatória, me olha significativo, entendo. Era uma alusão à música de Chico Buarque, O meu guri. Por vinte anos acreditei nisso.
Vejo agora, pois agora há o Google, assassino e pai de ilusões, que A maçã no escuro foi lançado em idos de 1961, e o álbum Almanaque, que contém O meu guri, em 1981. Eita memória. Quem erra, quem mente, quem recompõe? O ex-gari nunca deve ter dado a entender que a dedicatória era uma referência à música, eu, descubro agora em 2021, às portas do provável centenário-e-um de Clarice, eu que erro, eu que minto, involuntariamente, é verdade, sintoma de toda estória verdadeira. O caso eu conto como o caso foi. Ele enfatizava o fato de ser, doravante, de ter sido, daquele dia em diante, o gari dela, esse o seu bracelete, as palavras da dedicatória gravadas no bronze.
Deve parecer tolice, crendice, ingenuidade, esoterismo ou devoção exagerada, como pareceu insólita a um amigo, não, não Caio, a minha tristeza pela morte de Fernando Sabino, que foi tão amigo de Clarice, mas ter falado com alguém que um dia esteve diante dela foi para mim um evento numinoso. Indenizou-me de todas as fadigas de vendedor fixo e ambulante, boia-fria do conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos e agora vendido a metro para preencher estantes de escritórios de advocacia.
É como ser o destinatário de uma mensagem aparentemente extraviada, que esse ex-gari, fazendo as vezes de carteiro de coisas incorpóreas, as melhores, me trouxe, me depositou em mãos como um passarinho vivo. A ciência ainda necessitará numerosos anos para elucidar a natureza de tal fenômeno, quando ocorrido no universo macroscópico.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.