EXFUMO-ME – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


# como parar de fumar

acordar &
pés no tapete
mijo no vaso
dissolvendo sonhos

preparar o café &
bebê-lo apertando bem
a xícara, condensando
a atenção no calor das mãos
em vez da tentação da língua
dizer mais tarde, agora não

lavar a louça &
emendar gestos
como aprender a andar
um vacilo depois do outro
em frente, sem cara no chão
até cruzar a manhã

preparar o almoço &
cheirar a comida cupidamente
fingindo aromaterapias
em esperanto & depois
mastigar devagar
pois é preciso reaprender
o ritmo das coisas &
do vazio

novamente lavar a louça &
trabalhar ou
ir à praia ou
(se no sítio) olhar
as mangas que esperaram
para cair do pé
ligar para a mãe ou
ligar para a vó ou
para o amigo brigado &
dizer vamos conversar
sem pressa, sem ânsia
sem saber do tempo

mastigar o tempo
devagar ou
ludibriá-lo emendando
: mais tarde, agora não
                       agora vou fazer outra coisa
                                   depois
                                               atrás do outro &
um atrás do outro
agora tomar banho &
agora cortar as unhas &
agora hidratar os cotovelos &
agora ler um poema ou
agora escrever um poema ou
agora pensar poemas ou
agora ver um filme &
(beber água beber água beber água)
agora fazer pipoca ou
agora tirar o lixo &
agora escovar os dentes ou
agora recolher a roupa &
agora sentir tesão ou
agora lembrar de quando &
quase chorar um pouco mas
sacudir a cabeça brrrrr &
deitar resistindo à vontade
absurda daquele unzinho
ao fim do dia (&) dormir

& (não) é simples (?)


# como parar de fumar 2

como num dicionário analógico
coisas para ocupar o tempo
retomado aos cigarros diários

dançar
temperar de antemão a comida
comer mais devagar
fumando os sabores
trincar os dedos nas palmas
feito dentes
resistir
tentar fazer-me cócegas
pra me acostumar
aos inalcances do susto
dançar mais
contorcer-me até quase chorar
olhar o teto
olhar o avesso das pálpebras
pensar em fazer uma lista
de porquês não fumar
esquecer (porque o telefone tocou)
brincar com o cachorro
lembrar de como ele
dizia ter cara de
cachorro salsicha
com mais carinho
que raiva, tanto tempo
tragar(-me) (n)o tempo
pensar como
um personagem de Clarice
: eu estou sendo
estranhar a vida
sonhar com o fim
do capitalismo
respirar fundo
(coragem, coração, se joga
como corações se jogam — lembrei)
fazer a lista de porquês
mordislamber a língua
criassentindo deleites
beber água e de novo e
bem, vocês já entenderam


#
não fumar é simples apenas
não acender cigarros
como quem não rói as unhas
não tragar como quem
não masca os cabelos
não queimar as pontas
dos dedos como quem não
queima as pontas dos dedos

e quando a vontade uma vastidão
carcomendo o ventre pelo transdentro

-fa-zer-ou-tra-coi-sa-

(um poema, por exemplo)

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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.