NATAL NOS TRÓPICOS – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


A atmosfera refrigerada, musical e fragrante recria a prosperidade dos países temperados. Aconchegado no estofo macio, bem vestido, limpo e nutrido, comendo confetes não só porque são gostosos mas também porque são redondos, crocantes e coloridos, o menino no banco de trás olha para fora.

O calor que sobe do asfalto distorce a paisagem da avenida dividida por uma calçada esboroada onde árvores anoréxicas e retorcidas tomam o espaço já exíguo. Os transeuntes ilhados se veem obrigados a fazer manobras perigosas, como pôr o pé numa lagoa fervilhante de crocodilos. Tórrida savana. Ninguém diria que dois dias antes caíra um dilúvio, a não ser pelo volume do canal a céu aberto, onde os moleques aproveitam para tomar banho de piscina, saltando das passarelas, fazendo estripulias, esguichando com as bocas como anjinhos de fonte.

Na atmosfera escaldante, cacofônica e fétida da rua, os pés descalços no betume calcinante, áspero e abrasivo, seminu, sujo e desnutrido, um menino pede moedas de carro em carro, não só porque são valiosas, mas também porque são circulares, sonoras e reluzentes, ao menos algumas.

Só uma fina lâmina de vidro separa os dois mundos; os meninos ainda não sabem a diferença, não sabem que há um abismo. O do lado de fora estende a mão encatarrada com a mesma naturalidade do outro para levar à boca a mancheia.

Seus olhos se entremergulham. O do lado de dentro desce o vidro e entorna metade do conteúdo, segundo as suas estimativas, na concha das mãos do outro. Ao mesmo tempo, num gesto triunfal, eles abocanham a guloseima.

O do lado de fora reparte as moedas, reparando tanto nos seus tamanhos quanto o do lado de dentro reparara nas cores dos confetes, e sua mão avança para o interior do automóvel.

– É friozinho, aí dentro… – espanta-se.

– Aí fora é que tá quente! – replica o do lado de dentro.

Chacoalham as moedas em uníssono, num gesto cúmplice. Embora o sinal ainda esteja fechado os carros rosnam e se agitam, ensaiam arranques, alvoroçam uma pedestre que se apressa como uma gazela ao pressentir o bote.

– O que você vai ganhar de Papai Noel? – pergunta o do lado de dentro.

– Nada… – responde o outro, dando de ombros.

– Você esqueceu de escrever a cartinha e mandar pro Polo Norte? – é a sua vez de ficar perplexo.

– Eu não sei escrever…

O sinal abre. O carro dá partida. Os meninos se despedem.

– Eu vou ganhar uma bicicleta nova! – diz o do lado de dentro, colocando a cabeça para fora por um instante, compartilhando sua bem-aventurança. Os cabelos lisos esvoaçam e somem. O vidro sobe. Separam-se os mundos para sempre.

Estendida na calçada, a cabeça meio encoberta por uma flanela, a mãe do pequeno pedinte conta as moedas e reclama da receita.

– O que é que tu tá comendo, excomungado dos infernos?

– Foi meu amigo que me deu – ele adia o momento de engolir toda aquela doçura, embora ela inevitavelmente se dilua em sua saliva. Mortifica-o o pensamento de que devia ter guardado um pouco para depois.

– Sei – ela já conhece suas estórias mirabolantes, e não está interessada em ouvir mais essa. Olha-o de cima a baixo com desprezo. – Da próxima vez traga pra sua mãe, seu filhote de corno – e dá-lhe um tapão na nuca.

– Mãe, eu quero ganhar uma bicicleta nova de Papai Noel – insensível à ofensa e à agressão, ele reproduz fielmente as palavras do amigo, embora nunca tenha tido uma bicicleta.

– Pa-pai-no-el? Tu fumasse maconha estragada, foi? Só se tu robar a loja. De noite você dorme e sonha com ela. Agora vá ver se arranja algum pra gente ver se come uma penosa de noite, peste preguiçosa. Dia de hoje o pessoal fica mais caridoso, solta cédula. Aproveite essa cara de choro. Eu tô com uma ressaca da misera – e dizendo isso cobre a cabeça e volta a recostar-se num muro para reconciliar o sono.

Olhos marejados, o menino do lado de fora retorna ao sinal de trânsito. Com efeito, seu rendimento melhora.

Enquanto cantarola uma música romântica em inglês, a mãe do menino do lado de dentro pensa que daria tudo para jogar para o alto as obrigações familiares daquele dia e ficar com o namorado. Iam sair na noite anterior, quando já se julgava de recesso, mas tivera que noticiar um acidente terrível próximo ao cais de Santa Rita. Nem bem fazia três semanas que estavam juntos, e ela acabava de dar-se conta: estava apaixonada. Lembrando-se do filho e de sua ansiedade por aquela época do ano com uma pontada de culpa, retira os fones de ouvido e se volta para o banco de trás.

– Onde foi que você arranjou essas moedas, meu amor?

– Foi meu amigo que me deu.

– Amigo da escola?

– Não, eu conheci ele agora.

– Humm, sei – ela já conhece suas estórias mirabolantes, sabe a importância de respeitar a privacidade desse reino. – Mas solte isso que é sujo, meu filho, todo mundo pega.

– Mãe, eu vou pedir outra bicicleta a Papai Noel.

– É? Por que, meu anjo?

– Pro meu amigo, que não sabe escrever.

– Mas aí não vai dar tempo da cartinha chegar no Polo Norte…

– Eita é… É mesmo… Mas ano que vem eu peço.

– Peça, meu filho, peça…

E o menino do lado de dentro adormece, depois de ter despertado o desejo no menino do lado de fora. As moedas se esparramam no carpete; ao acordar, ele não dará por elas.

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.

*Texto publicado originalmente no livro de contos Legião anônima (2014, Cepe editora).