SEIS FLECHAS, DE CARLA DIACOV – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


mirando a ponta da flecha na cabeça do texto, a arqueira se traduz (ou é traduzida) pela poeta que dança conforme o gingado da culinária. o apetite como o desejo pela boca se metendo a devorar o que se desfaz antes da sobra. talvez a fome se pareça com a voracidade por adquirir um cheiro que torna a narina um complexo dinâmico para a genealogia dos odores antes de se diluírem na cafungada de quem prova antes de se lambuzar inteiro. a arqueira – a que cozinha a lentilha no amparo dos versos, na contação dos vestígios pela cenoura dilacerada durante o fio da faca – aprecia a tensão com as mãos, confere a presença de outras arqueiras segundo a concomitância das janelas, do brilho no metal que faz o olho piscar pela luminosidade da diferença contígua de vidas que põem mesa. então, pelo poema de carla diacov, a gente vai tentar ouvir um pouco desse lume para sentir o gosto do que se avizinha ao sabor do que pulsa.

SEIS FLECHAS

a arqueira cozinha lentilhas
vê a vida de outras arqueiras pela janela pesa
a vida de outras arqueiras pelo reflexo na faca corta a
cebola estica o limite do choro a arqueira põe a mesa
um prato uma colher muito velha uma música pela água
na caneca herdada corta corta cenouras com o paninho
tira destroços cor de cenoura do coração desafia
o equilíbrio do prato na mesa pensa mesa que nome
a mesa que verso a mesa que canção estar
curvada à mesa à cadeira o outono extrapolado umas
formas chateadas no céu das 17
a arqueira serve a lentilha a si seu arco escora a
porta aberta a velha colher é erguida e
não há no mundo suficiente cebola
que tire da comida o cheiro
da roda o gosto da
duração

essa coisa de explicar o poema é uma falha das maiores. o negócio, já tenho dito por aí, é incorporá-lo e fazer dele um compêndio para a devastação de alguma lógica. desse estrago escapam uns alicerces para conversas repletas de urgências. por exemplo, quando a gente cogita pensar o título – seis flechas –, seria possível listar uma infinitude de respostas bem bonitinhas, inclusive respaldadas no que o dicionário de símbolos (salve, chevalier e gheerbrant!) elenca muito importante e sabiamente a respeito das possibilidades de compreensão tanto do número seis quanto dos caminhos que a ideia de flecha ocupa no imaginário e na cultura dos povos. muito que bem, por aí e em associação ao poema, pode-se compreender um plausível sentido de luminosidade disruptiva da ideia de flecha aliada ao equilíbrio proposto pelo sujeito numeral. algo como o phármakon grego, que também trata do equilíbrio entre o que pode nos fazer muito bem ou muito mal, dependendo das proporções competentes a determinado contexto.

só que tem mais.

pelas flechas chegamos às arqueiras. e é por aí que as imagens começam a aflorar. como? assim: arqueiras com os olhos fincados na mira não dão tiro a esmo, prevalecem cismadas no alvo, em plena concentração. metem-se na orgia alimentícia das leguminosas e seus temperos, de modo que interagem com a fantasmagoria cósmica de quem não existe só. a arqueira cozinha lentilhas / vê a vida de outras arqueiras pela janela / pesa a vida de outras arqueiras pelo reflexo na faca. essa partilha do olhar pela janela junta os corpos na derivação do que são conjuntamente. afinal, a diferença pode ser pensada como aquilo que se aproxima pela condução ambígua de forças na existência de uma pessoa em relação à outra. a ventura ao dizer que estamos em união.

com a vida pesada no reflexo da faca, a gente percebe não se tratar de um fenômeno óptico customizado pela poesia. a reflexão alardeia o quanto as arqueiras se irmanam na duração do cozimento; e não há onda ou partícula que dê conta desse tipo de propagação. mira-se o peso de existências na imagem onde à faca é acrescentada a difusão para além do que corta e divide. esticar o limite é uma aprendizagem vigente na múltipla tensão entre corda, arco, flecha, mãos, cebola e olhos, numa corporeidade complexa nascida para dar conta do universo desde sua invenção (??!!) até o instante em que a faca corta a / cebola [e] estica o limite do choro. algo como retesar a corda do arco e sentir nessa potência o que ainda serão lágrimas ou a tentativa de aconchegar nos dedos a fugacidade do que em breve será trajetória.

talvez tal cena tenha a ver com uma liturgia que ritualiza os comes e bebes ante a fome. mais ainda, perante a história das muitas guardiãs reprisadas nos gestos de quem se percebe outra na consagração da identidade ou, ao mesmo tempo, de quem se apropria da diversidade concebida no silêncio, desde a métrica das ações entre os objetos que compõem a casa em que se encontra e é – todo o tipo de casa. a arqueira põe a mesa / um prato uma colher muito velha uma música pela água / na caneca herdada corta corta cenouras com o paninho / tira destroços cor de cenoura do coração desafia / o equilíbrio do prato na mesa. a arqueira constrói uma analogia de arquitetura e resgate ao arrumar um espaço de concentração no qual interna o tamanho da argúcia dentro do aceno minimalista da mesa. pôr a mesa rearranja a engenharia das intenções quando nos detemos na história, no sentido harmônico entre um prato, uma colher, uma música e uma caneca fruto de herança, estes que são apetrechos de vivências na constituição material da memória.

por alguns desdobramentos, dá para se pensar que tempo não é o que se mede por cronogramas. nenhum ponteiro ou algoritmo dita o cálculo do presságio reconhecido desde a janela por onde vidas são vistas. o cenário para ultrapassagens e antiesquemas modelares está proposto na idade da colher, na ocupação da música durante o espaço forjado nessa disposição compreendida pela falta de pausa. a lógica dos termos emparelhados quem sabe seja o que determina onde e quando se vinga a rotina de todos os dias, pelos quais se sofre com os mesmos anagramas conforme o deboche das simetrias oculares. seguir com os versos se enfrentando e desafiando o ouvido acostumado de quem se ocupa da leitura de linhas contínuas desacata a alegria de encontrar sempre a similar alegoria entre os dentes das pessoas que realmente mordem com força. é preciso reconhecer os traços, o que fica do coração tensionado contra a linha do corte. a raspagem da cenoura pela fricção deixa resquícios no paninho, e este se torna a testemunha do passado na presença dos destroços, também do nome que empreende, mediante a composição fonológica do real no lapso da linguagem.

medita. pondera. pensa mesa que nome / a mesa que verso a mesa que canção estar / curvada à mesa à cadeira o outono extrapolado umas / formas chateadas no céu das 17. é bonito como o pensar se eleva para a deglutição da mesa a partir da incorporação do que ela é para além de objeto. a mesa deixa de compor o espaço e ganha um contorno ativo ao fazer parte duma vivência atraída pelo nome, assim como habita a reversão para a passividade (ainda que ativa, pelo tom) na reconfiguração desses lugares-comuns. a bilateralidade dos termos é corroída ao se propor direta ou indiretamente que mesa ocupe e seja ocupada, na medida em que toma parte de um poema, que toma parte dos cotovelos nela apoiados e ainda deixa de servir de suporte aos pratos e colheres para com eles exercer a parturiência de uma voz recolhida na canção, a mesma que restitui a mesa e a cadeira à condição de sustento na extrapolação do outono – estação também vigente nos entremeios do suor e dos queixos batendo com o frio. lembro até de quando a gente se deitava de barriga pra cima e olhava as nuvens, esperando que elas dissessem alguma coisa com suas imagens. mas elas nem davam bola, só se moviam com a grande ilusão concreta do vazio, tão concreta que até hoje causa arrepios nos pelos quando chega perto das 17, instante sobre o qual não há poema que diga o quanto o céu se manteve tão dentro.

alguns podem chamar esse processo de fluxo de consciência devido à ficcionalização poética das janelas em correspondência com a memória da atiradora de flechas. pois bem. quando voyeurismo e cuidado se confundem, a arqueira ocupa o nome de cada pessoa leitora do poema da carla diacov. a gente alcança juntos a dimensão entre a cadeira e a mesa, e nisso a arqueira serve a lentilha a si seu arco escora a / porta aberta a velha colher é erguida. mastiga os grãos, lentilha por lentilha, no tempo próprio do sabor. ocorre que a maturação da arcada dentária obedece à intervenção da saliva com o alimento, criando nesse instante a convergência entre molares e suas virtudes oclusivas. isso acontece enquanto a arqueira olha para seu arco apoiado na porta, pensando no corte exato das cebolas e a proporção do sal para servir-se do alimento ao reparar na vizinhança e talvez questionar a referência arquetípica das flechas. e / não há no mundo suficiente cebola / que tire da comida o cheiro / da roda o gosto da / duração. mastiga. mastiga. sente o peso da colher ao levá-la à boca. sente o encontro das lentilhas com os dentes no enredo entre saliva e linguagem, a fim de cogitar a melhor trajetória para evitar refluxos.

potente é o sabor que reverbera no corpo quando se come. a isso também podemos chamar de duração. o gosto da duração. o que fica durante, nem antes nem depois. durante. o enquanto como reflexo além-material na interpelação do que se consagra pela ultrapassagem. e essa ultrapassagem, a extrapolação, não é tanto o que excede no corriqueiro do sentido. o exceder aqui no nosso caso diz respeito à intensidade; o que aprofunda a experiência, na medida em que o instante único de cada momento do tempo reaja à contradição do que se considera ser possível medir, chegando a definições sobre algo ser pouco ou muito. não há escassez nem abundância no gosto da duração. não há cebolas o suficiente, já sabemos, que interrogue o sabor ao ser vivido. ainda que a força de seu paladar impere, não basta para suprimir seu traquejo circundante. a percepção própria de se habitar a mastigação insinua a permanência na eternidade vigente nos poucos segundos em que as lentilhas abandonam sua organicidade discoidal e passam a ocupar, pela destruição dos ácidos, a corporeidade da arqueira enquanto ela vê a vida das outras arqueiras pela porta aberta.

ps. essa conversa com o poema “seis flechas”, de carla diacov, se deu após tê-lo lido na então recém-lançada revista peixe-boi, uma publicação das edições jabuticaba, com edição de ricardo domeneck, cujo primeiro número é dedicado à prosa e poesia brasileira contemporâneas. de fato, o que aqui se fez foi uma conversa, uma leitura, uma viagem proporcionada pelas distâncias e proximidades, pelos reboques e tecelagens que a poesia da poeta em questão provoca. não sabendo se afundei ou se maisoumenosmente cheguei a algum lugar, foi algo como seguir atentamente as imagens e acatar o caminho para onde elas me levavam. afinal, aqui se partilha o amor pela poesia e o gosto por uns entortamentos de sentido.
ah, muito importante dizer que a carla diacov é autora de Amanhã alguém morre no samba (2015); ninguém vai poder dizer que não disse (2016); bater bater no yuri (2017); A munição compro depois (2018); A menstruação de Valter Hugo Mãe (2017); e : pescoço x sobreviventes (2021). a poeta também está com uma campanha no site https://apoia.se/poemapoemesa onde as pessoas podem apoiar seu trabalho com valores diversos. o legal é que para cada quantia há uma recompensa bem bacana, sempre no âmbito da produção autoral da poeta. é isso. a vida não tá fácil, fora bolsonaro, e sigamos!

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.