CRONESIA – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


 

No crepúsculo lilás,
engarrafamento em Boa Viagem.
À direita a praia,
à esquerda os edifícios.
À frente e atrás, outros automóveis…
Que século difícil
e no entanto sinto
o mundo das fadas mais próximo.
Meus poros sorvem
esporos e aromas de Aruanda.
Vem da África
como esse grão do Saara
que acabo de triturar
entre os molares?
Serpente mística
desliza na avenida.
Alegorias autogeradas
são as melhores.
Entendo o menino pobre
que a contempla quase em transe
sentado no meio-fio,
recostado num tronco.
Não saberia explicar nada.
O hábito é necessário
e benditas suas suspensões.
Existe algo físsil
a se comunicar
com uma magiqueria fóssil
nessa procissão mecânica.
Bom momento para surgirem ovnis
acima da linha do horizonte.
Serão cósmicos ou marinhos?
Para uma espécie abstrusa
surgir do fundo do Atlântico
ou o náufrago Ulisses,
tendo viajado no tempo
a um futuro de deuses mortos,
cair de joelhos na areia e dizer
“Que fôsseis adversos!
Eu teria preferido morrer, sem vós, deuses míseros!”
Ok, eu me contentaria
com uma corcova de baleia.
Já que jubartes cantam em mim.
Quem sabe testemunhemos
um assalto a mão armada.
Afinal, ei-la, metálica manada.
Migração de bisonhos robôs.
Quem acreditaria numa espécie
que se desdobra em cadeia alimentar,
presas e predadores,
e essas posições intercambiáveis,
podendo o predador virar presa
e a presa, predador.
Tubarões recíprocos.
Luta de classes.
A serpente é uma ilusão.
Não há procissão alguma.
Há individualíssimos interesses.
Mas no carro meus amigos,
úmidos e salgados comigo,
comungam em raro silêncio.
Todos estamos antigos.
Saímos há pouco do mar
e isso é repetir o gesto dos antepassados
peixes que ensaiaram anfíbios.
De outra forma não seria possível
uma boa viagem.
Nuvens rosa.
Nuvens rosa.
Nuvens rosa.
Colho uma rosa nuvem
no púrpura do sangue.
Só podia ser novembro.

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.