UM LÍRICO LIVRO DE TERROR – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


(contém spoilerina)

Às primeiras páginas de O rinoceronte na parede, volume de contos publicados pela Urutau, já se sente que Frederico Toscano aprofundou sua personalidade literária, apurou-a, com um modo peculiar de combinar erudição e coloquialidade. Trata-se de uma prosa a um tempo formal e malemolente, rigorosa e dotada de ginga. Diria até: reverente e irreverente. É o que vemos na abertura de Buchada: “Primeiro foi o tilintar, insistente, buscando caminho pelas oiças adentro”. Mais adiante na mesma estória: “Terminado, foi para fora, olhar o céu que se avermelhava de crepúsculo e peidar em paz”. Essa atenção às oportunidades de inserir elementos mais prosaicos do universo do idioma é um traço característico, mas não abusivo, da escrita de Toscano. Quando a proporção dos ingredientes é adequada e a clara-em-neve bem batida, não se sente no bolo o gosto do ovo.

Não causa espanto que a obra tenha afinidade com o paradoxo. Outro deles: uma ingenuidade fundante e uma engenhosidade estrutural. As mitocôndrias ocultas do texto trabalham para o efeito do terror, mas são inocentes. Das coisas mais raras do que se pensa entre escritores, este conquistou um estilo próprio, uma voz que combina rigoroso respeito à sensibilidade (e ao tempo) do leitor e o desejo de dilacerá-lo, inerente a toda literatura saudável, já que em arte a inofensividade é mórbida. Não se trata de adular o leitor, mas de açulá-lo com precisão, elegância. Trunfo ímpar deste livro, aliás, é a beleza cirúrgica das metáforas, efeito que muitas vezes nasce (paradoxalmente, outra vez) do inusitado da comparação, da imagem. No primeiro conto, Curva de rio, um vestido branco ensaboado levado pela correnteza é equiparado a um pálido mussum. Pouco adiante, no conto-título, o sifão sanfonado sob a pia converte-se aos olhos da criança no “corpo segmentado de um enorme embuá, raro por ser assim, albino”. Esses dois exemplos, aliás, me fazem pensar na associação entre o branco e a amplificação do terror postulada por Ismael/Melville em Moby Dick. O signo do animal branco reaparecerá em Buchada (um da caatinga, que por sinal significa algo como “vergel branco”), e até no jacaré de açúcar de Jardim das delícias.

Toscano consegue ainda vincular de forma sensível o drama da pobreza individual à experiência do fantástico. Ao ser transformado numa espécie numerosa, cujos membros se reúnem sobre pedras, sob o sol, para esquentar o sangue como calangos (outra metáfora toscaniana), o nego d’água deixa de ser criatura mitológica para integrar o bioma da região e, mesmo porque é em parte humano, seu tecido social. Já em O rinoceronte na parede, a pareidolia de Julinha, sua capacidade de ver pessoas, rostos, animais e monstros pela casa, se articula com certa precariedade doméstica típica de países subdesenvolvidos, a exemplo de rebocos que caem e tão cedo não são repostos. É coisa que remete também a nosso clima invasivo, ao por assim dizer metabolismo acelerado da natureza nos trópicos. À ambientação nativista dos contos somam-se um flerte com o lirismo do gênero infantil e um conúbio com o terror, operações não raro simultâneas. A interação de Julinha com os objetos tem algo de As flores da pequena Ida, de Hans Christian Andersen, na mesma medida em que evoca Carrie, a estranha, de Stephen King.

Toscano não precisa reiterar palavras como Brasil e Sertão para que nos enfronhemos no seu espírito, não atua como uma repetidora de causos pitorescos, mas, à melhor moda mangue beat, funciona como uma antena enraizada na lama, no solo fértil e povoado do folclore local, sem deixar de captar as ondas de temas contemporâneos, como os transtornos psicológicos em crianças e a medicalização das dimensões libertárias da infância, dos quais tira passagens inspiradas e castiças:

“Caminhou pela necrópole das coisas cotidianas, inanimadas desde que a mãe passara a lhe dar aquele remédio. Estava ali, encarapitado sobre a geladeira, fora do seu alcance. Júlia lia com cuidado e em voz alta, sílaba por sílaba, as letras grandes na caixa de cores claras, com uma larga faixa negra cruzando-a no meio. Era um nome de menina, como o seu, e ela se perguntou se poderia fazer amizade com ela.”

Essa última seria uma frase ruim, não fosse a segunda variável da equação uma caixa de remédio, não se infiltrasse no texto um pouco da dicção da menina, do sotaque de seu pensamento, não tivesse Toscano demonstrado nas 30 páginas anteriores do livro ser um artífice consciencioso, amigo de remover com metícula as cutículas dos textos tanto quanto aguçar-lhes as garras. A extrapolação da pareidolia no final do conto é um movimento de imaginação caro ao autor, espécie de golpe pelo qual o judoca se faz conhecido: o insignificante, depois de passar a signo, torna-se significante. O fantasmagoricamente metafórico se torna desconcertantemente literal. É o caso dos símbolos da teia e da aranha em WWW. São viagens da conotação à denotação que perseguem, perdão, detonações dramáticas.

É interessante que Toscano use sua sintaxe quase flaubertiana para narrar as insolitudes de Assimetria, conto da estirpe do absurdo em que o protagonista passa a ver uma depois da outra pessoas sem um braço, às vezes arrancado de fresco. Numa altura do conto em que o desespero toma o herói e a casa ganha ares de refúgio, de maneira sutil somos informados de que a esposa, ao menos por enquanto, não foi atingida pelo infortúnio: “Agarrado às barras enferrujadas, chorou baixinho até sentir os braços conhecidos apertando-se ao seu redor”. Um mero plural se converte em informação transmitida por baixo da mesa do texto com a técnica dos trambiqueiros do baralho.

Pouco depois o conto nos instila dúvidas quanto à integridade da esposa usando o mesmo método indireto: “Sua mulher repousava sobre uma cama, cobertas puxadas quase até o pescoço, os olhos vermelhos e inchados”. Logo em seguida: “Lançou-se sobre ela e tomou a mão fria entre as suas”. A mão. Mais uma vez o número atuando como fator esclarecedor ou desorientador. Nesse caso, a aparição de uma mão não garante a presença nem a ausência da outra. Toscano alivia nossas apreensões, dessa vez: “Ela voltou a soluçar, balbuciando coisas que não faziam sentido enquanto postava os braços protetoramente ao redor de sua barriga”. Já a abertura de Canidae sorrateiramente introduz o assunto do conto, uma lembrança infeliz, embarcando-o num símile para o fluxo de uma enxurrada, por si só bem achado.

As insolitudes prosseguem em Casa de prata, que nos avisa no início: “O relato que segue despertará não só a curiosidade do leitor, mas, também, clamores indignados acerca da sua veracidade”. Não por acaso essa advertência nos remete a Edgar Allan Poe e autores contemporâneos a ele, não por acaso o estilo nesse conto é particular e estranhamente oitocentista. Na quarta página o personagem-narrador nos informa sobre haver pedido um coche, e entendemos aí, se não antes, tratar-se de uma narrativa de época, com a qual a abertura e o estilo combinam. O texto é deliciosamente ambientado num Recife desconhecido de muitos recifenses de hoje, temperado por informações históricas distribuídas com habilidade. O médico positivista que deverá enfrentar eventos sobrenaturais é um arquétipo da literatura gótica, mas este precisa contratar um barqueiro para navegar na cidade inundada, uma cidade construída por holandeses ao nível do mar, a sua moda, numa região exposta, contudo, a tempestades equatoriais. Fato é que dá pra sentir através da precipitação cadenciada do texto, da sua chuva, a crepitação do prazer do autor ao plasmá-lo.

As homologias entre um crime num açude e a barragem de cuscuz no prato de Tonha, em Jardim das delícias, são saborosas. Quando o texto chega a descrever essa última e sua cupincha, Socorrinha, aos olhos do delegado Heráclito, sorrimos por dentro ao distingui-las pela postura, pela personalidade, sem que sejam declinados os nomes. O modo como o mesmo delegado, forasteiro, não chega a comer a pitomba que abriria seus olhos é mais um ponto bem dado desse conto, talvez o mais complexo e bem-sucedido do conjunto. Poético, é um conto de terror, mas está para o gênero como para a ficção científica Ray Bradbury, de quem disse Mario Quintana:

“Todo esse encantamento de uma idade perdida
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar
e os nossos antigos balõezinhos de cor
agora são mundos girando no ar.”

Não quero dizer com isso que é um terror que não assusta: ocorre que ele se mescla a elementos de fascínio, muito embora também se conjugue ao naturalismo. A crudeleza descritiva de um Bainhas nos fere e retine no osso, sem prejuízo da mesma poesia. Toscano vai muito bem, aliás, quando se põe no lugar de crianças e adolescentes, mas nem por isso as elucubrações diurnas das meninas de A colheita são menos sinistras, e nem por serem sinistras menos pitorescas. O texto é muito visual e esse conto faz pensar num Shyamalan que tivesse voltado à boa forma, sem deixar de carrear algo dos casos de Ariano Suassuna. Esse colorido sombrio é a tônica do livro, um lírico livro de terror, e lisérgico como a salada de frutas que as meninas de Jardim das delícias vendem.

Frederico Toscano é um autor pernambucano que dá gosto ler e esse livro eleva a um novo patamar de elaboração literária uma tendência que podemos chamar gótica da literatura brasileira contemporânea. Fenômeno muito expressivo no nordeste, não por acaso nos chega agora o volume de contos Gótico nordestino, do paraibano Cristhiano Aguiar, pela Alfaguara. Esse filão criativo abandona não o compromisso de elaborar a realidade, mas o de fazê-lo mediante um registro documentarial. O que toca o ser humano presente lhe diz respeito agora, é atual, alimenta as raízes da humanidade viva e se traduz em seus gestos mais banais à luz deste sol cruel, deste sol generoso, deste sol imparcial.

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.