AS FORMAS FUGAZES QUE TALVEZ TIVÉSSEMOS – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


Escrever sobre é diferente de escrever. Ainda assim, ainda o é. À primeira escolha (a mesma, de certa forma): sobre o quê, hesito — a hesitância é uma velha amiga. Não entre o que propriamente me atravessa, mas entre os que me fecundam. Sobre: o que em mim se multiplica. Quando: quero. Como: Consigo. Então, vou-nos.

Sophya de Mello Breyner Andresen e João Cabral de Melo Neto conheceram-se em Sevilha, salvo engano. Tinham visões diametralmente opostas sobre a poesia e as maneiras de escrevê-la. A dama do mar dizia que escutava poemas quando criança, antes de saber que alguém os havia escrito, e portanto a poesia se fizera nela como entidade, quase. Os poemas baixavam em si, perto de prontos, soprados, psicografados: mistérios de palavras. João, construtor de securas, não acreditava em inspiração e trabalhava meticulosamente, cada dia, no que estivesse a criar, desenhando para os olhos quase-equações da língua, correlações: engenharias. Disciplina, disciplina, disciplina: catar feijão.

Sophia e João tornaram-se bons amigos e admiradores mútuos. Dedicaram-se poemas, respeitavam o que nascia do processo particular alheio, sabiam: em arte, é difícil parir verdades absolutas.

Releio, porque desejo escrever algo sobre, A forma fugaz das mãos, de Fábio Pessanha. Mistérios que não compreendo, poemas que meu pensamento estranha, paisagens sonoras, passagens de uma plasticidade retorcida em origami. dizer um poema / como conceber / um ato incendiário. Algo de mantra nesses versos, não só pelo sentido, mas repare: um m que se insinua, atravessado em meio em dois oms, espraiando-se em as abertos, findando no sopro de um (pav)io. escrever como / se o céu não existisse e cada / palavra fosse um golpe na sintaxe / (…) até que o orgasmo / rompesse com o enigma / dos meus gemidos. transito pelo labirinto, Fabio diz, eu leio, ouço, aposso-me: ele não é o único. Há quanto tempo perco-me mais nas texturas de chapisco & hera dos labirintos do que no manejo de faca & formão tentando aclará-los? Deito-me —  para depois: um novo dia.

(Interlúdio fora de ordem:

Um teixugo
sentou-se num sabugo
no meio do refugo

Por que
afinal?

O lunático
segredou-me
estático:

O re-
finado animal
acima
agiu por amor à rima

O teixugo estético, de Christian Morgenstein,
por Haroldo de Campos

Quem quiser entenda: a linguagem é bem mais que transmitir discursos informacionais & racionais. Ou como nos canta Wilberth Salgueiro: por associação acústica, o gesto poético pode se sobrepor a sentidos mais lógicos ou decodificáveis. Salgueiro continua, sobre concepções de poesia metafísica, irracionalista, transcendental, versus outras cerebrais, cartesianas — mas disso eu já falei. O que acrescento: a poesia que te encanta deve ser deleite (ainda que o deleite difícil de um desafio). Somos tantas e tantos, não creia em quem lhe diga que este poeta ou aquele livro são imprescindíveis. Ninguém tem que ler nada. Fim do interlúdio.)

Dia seguinte, Todos os nomes que talvez tivéssemos começa a me desconcertar. Tijolo. Tetralogia. Quatro livros de Guilherme Gontijo Flores reunidos em um. Sob o signo da diversidade, cerca de trezentas e trinta e três páginas  ­— inexato, a mim vale mais o valor al(i)terado: dança délfica desnovelando o cânone & o contemporâneo, fragmentando fios em grãos, para depois-ao-mesmo-tempo os refundir, transfundir, (confundir) (a quente & a frio) em novos cacos de novos espelhos.

A formação do vidro é uma questão cinética, por depender estritamente do tempo, calibrado para que seus átomos não se (re)ordenem muito. Sólidos cristalinos apresentam um padrão de simetria na composição molecular. O vidro, modo diverso, é de estrutura desordenada. Que eu me organizando posso desorganizar Que eu desorganizando posso me organizar, cantou Chico (o Science, não o outro).

poesia é comer o cu do silêncio, escreve Flores, pós-moderno de plantão, ofertando — uma / forma de / benção — a promessa impossível do sentido. a ametista desabrocha / seu veio / feito falha / incrustada na druxa /esdrúxula / no cerne do fracasso do granito.

Por muito tempo, a poesia se preocupou mais em organizar os sólidos das palavras, construir cristalinos (ainda que deslocando imagens e sentidos). Depois, despreocupou-se, transparecendo em vidros remix de tempos & conjugações, libertando o aprendizados das escolas. Nada contra calcular (salve, João!), nada contra incorporar (a benção, Sophia!), e mesmo toda e qualquer desestruturação tem um tanto de ordenamento intencional e um tanto de chama nova, inapreensível. Mas a mim o jogo fica mais divertido quanto mais brincante, entrelaçando formas fugazes às mãos, aliterando todos os nomes que talvez (ou não) tivéssemos, lambendo as palavras e depois se alucinando — feito fossem barros, (de) manoel.

Poesia é voar fora da asa.

E para que serve a poesia? Para nada. Porque a vida não basta.

_______________________
Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.