UM NOME ANGELICAL NO ROMANCE NEM SINAL DE ASAS, DE MARCELA DANTÉS – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


anja foi um nome que aprendi a dizer e que me acompanha há algum tempo. mesmo bem depois de terminada a leitura do romance nem sinal de asas, de marcela dantés, ainda pensava na personagem, no quanto seu corpo havia passado a compor o meu. uma agonia até. isso porque anja recupera um lugar de humanidade muito fundo na gente, uma agitação (lembrando o sentido etimológico de agonia), que nos faz olhar para a solidão, para a morte, para o amor, a dor de ser a corporeidade do engano, da cor que não deveria ser. e qual cor é? qual corpo é são? existe? anja voa e nos carrega. literatura é isso, penso. uma escrita que interfira em nosso modo de ser.

Tem cheiro de carne queimada. Para Anja, qualquer febre é um grande transtorno. Porque dói. Porque a sua pele nunca se recuperou totalmente e, quando a temperatura corporal aumenta, todas as suas células ardem e as lágrimas saltam dos olhos como se fossem eles os culpados daquilo. Anja nasceu prematura, há quarenta e um anos, dois meses e alguns dias. E Dulce, sua mãe, sempre achou que foi por isso que não deu tempo de a pele ficar branca como ela sonhava. Ela preparou e seguiu, diária e compulsivamente, uma reza forte que devia durar até o fim das quarenta semanas de gestação, mas Anja fez o favor de chegar antes, em uma tarde de tempestade, céu negro e pesado, em que se completavam insuficientes trinta e sete semanas.

corpo é tudo que pode ser. a sensação. o sabor. o que escapa e surpreende. a falta. o excesso. o cheiro de carne queimada extrapola o olfato para constituir um estado de vigência. o cheiro seria a condição de permanência de uma memória vivida na pele, e não há metáfora nisso. memória é onde a vida exerce seu próprio dilema existencial. a vida é para a morte. a densidade da morte acontece em vida e reelabora a factualidade das entrâncias de uma na outra. anja sabe disso. é seca na diretriz da fala que nos toma a voz. sua temperatura é febril, não por ser uma eventualidade, e sim por conviver com a materialidade – ou maternalidade – da decepção. o cheiro de carne queimada faz doer além das narinas, em tudo que diz respeito a olhar o mundo pela bolha da pele não totalmente cicatrizada, porque a sua pele nunca se recuperou totalmente.

lóri, personagem do romance uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de clarice lispector, pergunta como prolongar o nascimento pela vida inteira. em anja o lugar é outro, ainda que paradoxalmente o mesmo – mas paradoxal só se pensarmos a partir da oposição cartesiana dos fatos. não há antagonismo entre viver e morrer, mas um prolongamento da morte desde o nascimento. se pensarmos que cada um de nós seria um exercício mortal da vida ou o breve intervalo entre nascer e morrer, anja amplificaria essa dimensão na extensão de sua pele. além dessa limitação visível, haveria ainda a reclusão silente de seus dias, quando aí fosse possível apontar o recolhimento na impossibilidade do dizer além da materialidade corpo.

Anja era câncer

continua sendo, na medida em que causa a anomalia sentida na leitura de um fato tornado literário. a anomalia não seria, na verdade, o fato em si, mas a descoberta de um acontecimento poético nascido de uma notícia de jornal.1 ou seja, a ruptura da informação na vida cotidiana para a literária proporciona a irregularidade propícia à criatividade, à narratividade do além-material. não há definição quanto à origem anímica dos entes, tampouco se rastreará o tamanho da morte.  a vida que segue na ponta dos pés se conserva rumo ao estado anômalo, por se referir metaforicamente à anarquia da proliferação celular que, por sua vez, é ressignificada no impacto de um corpo encontrado morto há dias, sozinho, e desdobrado no presente romance.

houve um desvio, acolhido como o modo de leitura realizado não só do corpo, mas como corpo, literatura. de certa maneira, ficamos à mercê de perguntar onde estão nossos cadáveres; o que fazemos deles quando os encontramos no noticiário de nossas lembranças. o céu negro e pesado talvez nem seja tanto o excesso de nuvens, mas a gravidade da iminente tempestade em nossos esconderijos. a correlação entre o fato acontecido e o narrado determina a propagação irregular dos sabores que pensamos ter provado. de novo, a anomalia. não como exceção. é o instante em que nos perdemos da lealdade em relação a uma definição corriqueira de verdade. metemo-nos na engrenagem das percepções e assim ficamos alarmados pela junção de imagens com o que mais surgir enquanto conquista e devastação. anja nos leva à metástase.

Todo mundo se acostuma com o cheiro da morte. Porque é inevitável, mas também porque é banal, só mais um dos muitos odores que o corpo humano produz. Dizem que é um cheiro que quem vai morrer não sente, mas aqueles que estão em volta, guardiões das almas, abutres das posses ou meros transeuntes desavisados, sempre percebem.

algo como estar dentro do cheiro. fazer parte dele porque, antes, ele também nos é. cheiro de morte tal qual uma especificidade do morrer que toma as narinas e avisa: ou agora ou nunca. nem sempre dá certo porque agora e nunca se enviesam nas determinações além-olfativas do tempo. alguém chega e diz: é cheiro disso ou daquilo outro. de morte. coisa estragada. perfume. então, a gente pensa: cheiro derrama uma presença fantasmagórica de memória, de transitoriedade entre o vivido e o acontecido. mais um dos muitos odores que o corpo humano produz e vai junto nessa produção. talvez seja uma alusão ao desfazimento, quando a corporeidade se deriva em partículas a serem colhidas pelos narizes arredores.

a gente recebe o corpo do outro na pele, pelo cheiro, e faz dele a fronteira material de nosso próprio desfalecimento orgânico. mas isso é pouco quando a ideia de corpo transcende a materialidade. os que estão em volta, guardiões das almas, abutres das posses ou meros transeuntes, sempre percebem. captam a vigilância transitiva que lhes chega pelo desequilíbrio entre quem está prestes a morrer e quem ainda vai barganhar um pouco mais com a existência. é uma percepção da qual o epitélio olfatório não dá conta.

É tudo mentira.

É tudo verdade.

anja ocupa o lugar entre mentira e verdade. anja é um nome intensificado pela falta. ela já tinha olhado as costas no espelho muitas e muitas vezes e não havia nem sinal de asas. pela mentira das asas, vive-se a verdade da invenção: ângela. um desdobramento pela similitude sonora, que não deixa de retomar a verdade do nome. ângela, tal como uma mensageira, ocupa o limite entre o calar e o dizer. estaria eu perdido se não fosse o esconderijo da linhagem de fuga. abortaria o céu antes de os anjos o ocuparem, a fim de trazer a boa-nova, eu mesmo, por tudo que antes de mim era fantasia. sou eu também a ocupação de um apartamento num prédio antigo, vazio de sua fama, alicerçado na memória dos que resistem como mensagem de um tempo passado. sou eu a recusa. a pele que deveria ser, mas não é. mas o que deveria ser? afinal, tudo que é existe como tal para além da expectativa de terceiros. meu nome é anja e sou renúncia.

é tudo verdade. é tudo mentira. quem vai morrer nunca sente o cheiro da morte. as janelas e cortinas fechadas não permitem que o tempo passe. congelam o aspecto da passagem numa ironia que o corpo não permite consagrar. mas corpo é corpo independente de qualquer justificativa de fuga ou da imersão numa ideia de verdade. o corpo morre no tempo próprio da degradação celular, pelo excesso ou pela falta. o corpo vive quando não se restringe ao pedaço de carne deixado para apodrecer. anja mais que ângela habita desde o nascimento a unção feita com suco de limão. quem sabe assim se tornasse o desejo do que nunca poderia ser. quem sabe assim fosse o que não nasceu para ser. é tudo verdade. é tudo mentira. as bolhas, a cor por debaixo delas. a cor por cima da carne e debaixo do sol. a cor abaixo da vida. acima da morte.

Anja fez exatamente o melhor que pôde, todos os dias.

[…]

‒ Meu nome é Anja. É o feminino de anjo.

eu, leitor, me agarro ao que anja desencadeia. eu, invenção intermediária, escrevo sob a tutela das imagens e à excitação da poesia, a qual independe de gênero para proclamar a interdição do impossível. anja, feminino de anjo, é meu nome. para onde as asas apontam já não sou mais destino, e delas nunca se teve notícias. nem sinal. todos os dias a regência histórica de quem me deu à luz ocupava minhas brincadeiras. todos os dias, uma criança abortada. todos os dias, o calor como exercício da lembrança de nascença. todos os dias. a morte ao redor dos que dela estavam próximos e eu cuidei. até onde pude. todos os dias, o excesso, a exceção. o abuso do corpo, no entanto uma marca a mais ou a menos talvez não fizesse diferença. mas é tudo mentira, sempre faz. é tudo verdade.

p.s. o romance nem sinal de asas, de marcela dantés, foi publicado pela editora patuá em 2020. li em 2021 e desde então ele ocupa meus dias. às vezes mais, às vezes menos. algumas vezes, tentei escrever a partir dele (nunca sobre, sempre a partir), mas texto não vinha, paciência. entendo que quando uma obra me martela insistentemente é hora de escrever com ela. assim o fiz. não sei ainda se esse seria o texto devido, nunca sei, na verdade. a incorporação de um nome, de uma obra, é coisa que leva tempo e anda com a gente. mesmo que informações se percam, o cheiro fica, e é isso que importa, quando a poesia do enredo fica tatuado num lugar que a gente não sabe dizer muito bem. anja não tinha asas, talvez seja a anomalia de um corpo encontrado num apartamento, vazio, frio. anomalia nem sempre é algo ruim. penso que literatura, poesia, arte, nascem dessas desfigurações, do desequilíbrio do que se entende por ordem comum dos fatos. nem sei se nascer é a melhor palavra, por exemplo, já que aqui morte é lugar de nascividade. mas deixa, a gente não precisa da demarcação ordinária das teorias. só é preciso ouvir e deixar o corpo tomar o que sempre foi seu. nem sinal de asas foi finalista do prêmio são paulo de literatura, na categoria melhor romance de estreia, e finalista do prêmio jabuti.

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1 El País
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.