Coluna | Sentido
Tudo conta. Nos contos de Nivaldo Tenório. Aquela menção colateral e aparentemente supérflua? Desconfie. Pode estar escondido ali o germe da intriga, que o autor encapsula com maligna paciência. Ao leitor ledo e incauto, pode ser que o conto não diga nada, passe em brancas nuvens de verão. Verão, que arma tempestades terríveis, súbitas, por lentamente preparadas. Sente-se sempre em Verão, contos, Cepe Editora, a ameaça, o mormaço, a opressão que antecede a chuva, porque o autor reproduz as técnicas do tempo em suas tramas familiares, infamiliares. Essa opilação é antônimo de bonança. Famílias ocultam muito bem seus segredos, por que o narrador nos entregaria essas joias da intimidade de bandeja? Há mofo atrás dos móveis, no avesso das máscaras, no lado de dentro dos mais lustrosos anéis e pingentes de trancelins. Azinhavres.
Na literatura de Tenório os tsunamis não se abatem sobre a costa, pesam eternamente, sisificamente, em nossas costas. Não chega nunca o momento em que precisaremos quebrar com o martelo o aquário onde um mágico tenta se libertar de correntes. Assistimos ao desenvolvimento do tsunami, vemos o homem submerso se debater entre cadeados, testemunhamos inertes a aproximação da lagarta de fogo. Ficamos cativos desses instantes, como de luminosos pesadelos. Talvez os piores.
À moda tcheckoviana, Nivaldo semeia elementos aparentemente inócuos, mas não os retoma triunfalmente antes do fim para dar-lhes uma função crucial. Não cria, nas últimas linhas, o momento em que as trombetas dos anjos soam e tudo se integra e entrega, as partes se unem. Deixa o serviço de montar o Frankenstein para o leitor. O desenlace de um conto está como que esquartejado por todo seu território, cabe-nos reconstituir esse Osíris, cuja fragmentação já é evidência de um crime. Essa álgebra é pessoal e intransferível, compete a cada olhar. O primeiro pedaço pode estar ali, despretensioso, numa dobra do primeiro parágrafo, e ser o último. Cabe-nos retroceder mentalmente até eles, melhor: mantê-los em suspenso durante a leitura, numa espécie de malabarismo em órbita. Por que, mesmo, aquela menção a um câncer de próstata? Não basta passar pelas informações, é preciso guardá-las. No conto que empresta ou partilha o título com o livro, há uma gradação como a do céu crepuscular, que muitas vezes só percebemos quando a noite cai. Com dicção muito própria, o autor camufla o secreto mecanismo de cada relato em meio a folhas do jardim de Laura e da estufa de Ivan. Na abertura de Lúcio:
“Meu irmão às vezes aparecia com filhotes de pardais, os ventos eram mais fortes na nossa infância ou os ninhos estavam em toda parte”
Esse modo arrevesado, sibilino, sardônico de dizer, através do qual se coa não obstante uma simpatia ao humano, é peculiar a Nivaldo. Linhas de alta tensão perpassam as entrelinhas. E é como através de um jardim selvagem, de uma mata cerrada, ambos terrenos minados, que se avança nesses contos. Uns personagens cultivam as folhas, outras as lançam ao fogo, outros as empilham, outros e às vezes os mesmos as fumam, acendendo cigarros com o fósforo transitório das vidas.
“Aos 12 anos eu fumava escondido de mamãe e ela chorava escondida de todos na casa, quando ela morreu, muito tempo depois de papai, seu corpo coube numa caixa de fósforo comprada numa funerária.”
A verdade está enterrada sob a serrapilheira, a serragem, o húmus, os fungos, às vezes debaixo da cama. Você nunca imaginou que dorme sobre um cadáver? Como um fantasma hamletiano, Nivaldo o aponta, e some. Um mágico que sumisse no meio do truque ante a plateia atônita; ela leva alguns minutos para entender que esse era o truque. Não era apenas um mágico, era um trickster. Acontece que o esforço de acompanhar seus movimentos é compensado. Há um surdo eureka mais reticencial que exclamativo. O riso sempre irônico de Tenório se deixa entrever na composição das frases:
“Não eram só cobras, havia povos primitivos de outras selvas”.
Pode-se dizer, inclusive, que gosta de explorar certas hipóteses de indecidibilidade da linguagem. Se fala em povos primitivos de outras selvas, faz referência à selva em que vivemos, nos chama de povo primitivo? Chama todos os povos de primitivos? Ou apenas se refere às selvas anteriores e muito literais pelas quais o fotógrafo passou? Nivaldo ri. Espectralmente, ou talvez seja seu reflexo no vidro e ele esteja a nossas costas, perfeitamente físico, houdiniano. Não é menos que sintomático um dos contos do livro se chamar Houdini.
Há em Verão uma consciência aguda, apanágio de leitores contumazes, de uma certa exaustão narrativa da humanidade, dada a superprodução de mitos, fábulas, estórias. O terráqueo é antes de tudo um mitômano. Essa noção aparece de modo mais explícito em Míchkin:
“Míchkin ainda digere, sei que a história o agradou, nela há todos os elementos com os quais ele está habituado, é o mesmo modelo de outro Joseph, o Campbell, e vem de longe, desde Prometeu. A jornada do herói teve muitos até aqui. Joseph Smith é só mais um quando vivia no seu mundo e foi chamado para a aventura. A tese de Campbell é a de que todos os mitos seguem esse padrão, bosque, encontro com o sobrenatural, níveis de estágios etc., está tudo lá, nos arquétipos e no inconsciente coletivo de Jung, Hollywood e a Disney compraram essa ideia, eu sei tudo isso, trabalho ou trabalhei numa porcaria de editora, e Míchkin também sabe, a seu modo.
Joseph Smith conhecia Aladim?, Míchkin finalmente perguntou.
Agora eram os mórmons que digeriam”
Ao longo de todo o livro, sente-se a recusa do autor em utilizar certos recursos e movimentos de eficácia garantida no que tange à comoção do leitor. O escritor precisaria achar novas maneiras de atingir. Ou uma maneira própria. Essa atitude digna e quase ascética lembra a literatura de Sidney Rocha, que faz seu livro de contos Guerra de ninguém ser atravessado de ponta a ponta por uma bala, vária e invariável. Já Verão assume ao fim e ao cabo a feição de uma única estória de facetas cubistas, sombria em seus tons claros e em cujas sombras brilham os olhos do monstro que espreita atrás da máscara humana. A humanidade seria um truque houdinesco. De quem? De uma desconhecida e íntima besta, a que permanentemente sublimamos para que não se condense além de certa massa crítica, certo ponto de não retorno simbolizado em nosso folclore por lobisomens e papa-figos, entes de que Tenório não trata: decodifica.
Não é contudo o caráter elíptico o que leva a obra a ser difícil, indigesta. Há em sua tônica algo de advertência. Um ardente pessimismo. Encerra todo ardor, entretanto, secreta perspectiva de salvação? Recusa a simplesmente desistir, acinzentar-se, cumprir a tabela do resto da vida. Irresignação é esperança, resignar-se é desesperar. Triste mesmo seria um pessimismo choco. O pessimismo de Nivaldo é fosforescente: assim pode acusar a escuridão. Muito embora transitório em sua fulguração, o fósforo cumpre o papel enquanto cai no poço de nossas almas. E não termina de cair. O próprio título do livro sabe a amarga e picante ironia, transmuta-se até em verbo, espécie de inscrição em pórtico de templo e cemitério, rigorosamente econômica, minimalista, instigante e ameaçadora: vocês verão.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.