coluna | palavra : alucinógeno
agarrar é um verbo realizado também sem as mãos. um saber que provém da ausência, mas uma ausência presente. eis talvez a composição do silêncio no sentir do que dele é excesso, peso. a ruminância, a falha. contrassenso primordial desde a ruptura com o absoluto dos termos. o silêncio é poema. concreção da poesia disseminada na matéria vertida em audição. escrita. o calar enquanto roteiro não premeditado daquilo que se tenta reter. no entanto o silêncio não se pega, sabe-se de cor, ainda que ele reaja ao poema, ainda que ele exerça sua força no elemento poético das palavras, ainda que o poema silencie ante a escuta. ainda. o que vale é a peleja, o corpo a corpo no transe entre suor e verbo. peito aberto ao que não tem perdão. agarrar é um verbo também realizado sem as mãos, e orides fontela sabia disso.
Poema
Saber de cor o silêncio
diamante e/ou espelho
o silêncio além
do branco.
Saber seu peso
seu signo
– habitar sua estrela
impiedosa.
Saber seu centro: vazio
esplendor além
da vida
e vida além
da memória.
Saber de cor o silêncio
– e profaná-lo, dissolvê-lo
em palavras.
poema traz para perto o que nunca esteve. ou quando há um modo ameno de converter ruídos, faz pausa na constatação de que maior do que o medo de violentar o vazio seja a repetição ritmada das frases. poema é também o título de um poema de orides fontela, e nenhuma redundância é aqui conivente com o pleonasmo de uma frase sem sal. bem temperadas são as construções sem lirismo de orides ante a pungência solística do verbo na construção inspirada dos versos. poema é ponte que reúne as instâncias não sentidas do corpo, uma sabedoria independente, ajuizada na competência do pensamento e seus parapeitos. a janela se abre para receber as dúvidas, sem as quais não se poderia exercer o brilho de uma palavra encrespada por resquícios, plantados de antemão pela razão colonizadora do bom senso e seu conforto.
o peso, o silêncio-além-branco num apontamento para a mais possível realização do vazio. poema é nada. um instante de linguagem no qual palavras se arriscam na interlocução com poetas. no nada do poema se reúnem a memória, o oco, a força gravitadora em torno da imagem, o gatilho de uma ideia. a vida. a morte. também compõe o poema sua própria profanação, o elo com o lado de fora da linguagem, se existisse esse lado de fora, ou o atemporal. talvez não exista. mas o elo, o meio, o entre poema-e-poesia creio que persista ante a diluição da linguagem em palavras. um algo de sintaxe no meio de tantas morfologias, celebrando o entrelaçamento das possibilidades semânticas, visuais, intermodais. o acontecimento verbal do poema em sua deveniência e dissolução.
pela tensão entre diamante e espelho há uma pedagogia constituidora do reflexo de se pensar afora o visível. refletir também coordena a ambiguidade do mostrar-se às escondidas, desde uma prevalência dúbia de aparências. a voz do poema sabe de cor o silêncio. dizê-lo é ser com ele. mais ainda. ser o silêncio desenha a perda da palavra ou o ganho no rearranjo que cisma a figura letral da falta. talvez seja uma displicência um tal resgate material da inconsciência, vingando a quietude como habitação, na medida em que o silêncio toca o segredo a ser revelado – ou quase – nas palavras. o quase seria tanto a dúvida quanto a afirmação de que não há desfecho que determine o poema. ele é dobra, possibilidade de retorno, rebotalho. diamante e/ou espelho no brilho que transpõe a imagem gêmea de si mediante a fronteira criada entre reflexo e sua origem. a ausência plena de potência no devir que virá a partir do silêncio e do branco. portanto, o quase tem a ver com palavras que no poema se ressignificam ao atuarem no sentido de serem lugares, clareiras, crateras: acolhimento e assombro.
o silêncio além / do branco, como se uma disputa houvesse. no entanto, disputa não como rinha entre opostos – silêncio e branco –, e sim a instauração de uma referência espaço-temporal em que ambos os termos se compatibilizam no âmbito do nascedouro poético-filosófico em harmonia tensional, quando o nada assume sua potência criativa, desencadeadora de possibilidades. na paisagem estabelecida, o além não funcionaria tanto em seu caráter adverbial, mas como alternativa cujo desequilíbrio faz bem ao movimento poemático, necessário à assunção ativa do silêncio numa imagem-questão tão presente na poética de orides fontela. o silêncio é além, discrepante das modalidades cerceadoras do sentido de ausência sonora. ao contrário, é onde há toda a potencial existência sonora.
a gente aprende na escola que o peso é uma força gravitacional. ele faz pender ao chão a resistência de quem dele busca o voo, exerce numa relação entre massa corporal e gravidade o resultado do esborrachamento. quanto ao silêncio, ao saber seu peso / seu signo, a voz do poema ressignifica tal conexão pela proximidade etimológica entre saber e sabor, portanto, a escrita deglutidora de significantes para entortamentos de significados. provamos com a boca cheia de previsões a instância corporal da escrita. quando as palavras pesam além da semântica, elas caem para fora dos enunciados talvez por procurarem algum equilíbrio, referência. então, tal qual um farol que fura a obscuridade, a estrela impiedosa alardeia seu peito para acolhimento do silêncio enquanto possível provedor do poema. quem sabe seja algo como olhar para a superficial nudez daquilo que se apresenta aos olhos com a esperança de que o poema seja mais. e é. o mergulho desbravador de vestes que não se satisfaz com a superficialidade palpável da razão.
viver não é preciso, o poema não é preciso, mas é necessário saber seu centro: vazio / esplendor além / da vida. é fundamental sacar que nesse enjambement o desguarnecido estado das coisas se apodera da vacuidade tanto quanto por esta é tomado. saber o centro como ter no mais profundo do humano a experimentação, tendo em vista que talvez tudo seja margem, inclusive sua ausência. o além pr’além do que se espera por destino. o além não para mais longe, e sim para ainda mais dentro: vida além / da memória, isto é, cada vez mais apropriado da cosmogonia singular de se produzir egos. há nesse movimento de apropriação uma possível reiteração do poema à poesia, da palavra à linguagem.
vida e memória se devoram num ouroboros mimetizado pela voz que diz ser necessário profanar o silêncio na dissolução de palavras, além de sabê-lo de cor. reinaugura-se a ideia de centro por uma fronteira redimensionada durante os cortes dos versos. o vazio seria porvir, jamais falta. por sua oquidão se entende o sentido de possibilidade e o iminente desencadeamento de realidade, da mesma forma que por dissolução é possível compreender se tratar da restituição à solenidade de tudo que ainda está por ser dito mediante a gravidez da linguagem. dizer uma palavra seria então uma experiência parturiente, desde a qual testemunhamos em nossa leitura de mundo o nascimento verbal, simultaneamente à sua morte. dizer um poema seria como proceder ao seu sepultamento durante a evocação vocabular, e esta desperta a sincronia de possíveis encruzilhadas por onde a realidade se desenvolve quase sempre pelos desvios. saber de cor um poema… gesto dos mais impossíveis, na medida em que o silêncio deixa de existir materialmente quando acondicionado no dizer. afinal, a manifestação do silêncio – do vazio – na enunciação acontece mediante seu ocultamento no que se dá a ver palavralmente. por isso, uma completa dissolução. ou quase.
p.s. os poemas de Orides Fontela são de grande potência. uns argumentos frasais regidos por cortes nos versos ou pela realocação da palavra afora seu arranjo semântico. o branco, o silêncio, as mãos, a forma e seus pertencimentos poético-filosóficos. há também o ritmo sincopado das frestas e alguma melancolia ajustada, sem exageros, num concerto cuja harmonia é composta por um suposto equilíbrio, que tende a se perder à custa de uma breve respiração. uma poesia pulsante, pensativa, que dá origem a poemas filosofantes, isto é, passíveis de sedução via inspiração desalojante das maneiras esperadas de se dizer/pensar/interpretar uma questão. simplicidade traiçoeira, capaz de corromper a linha reta das frases. enfim, uma poesia de mergulho e arrebentação. a propósito, o poema “Poema”, que provocou aqui desencadeamentos frásico-imagéticos foi publicado originalmente em Alba – vencedor do Jabuti de 1983 – e compõe o livro Poesia completa (Hedra, 2015).
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.