STELLA E CAROLINA – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


(maio: mês da luta antimanicomial e da abolição formal da escravidão no Brasil)

Talvez que desdobrar pensamentos e(m) linguagens seja um jeito de viver.

Ando ouvindo Stella do Patrocínio. Literalmente. Internada por anos em um hospício no Rio de Janeiro, este ano entraram em domínio público os áudios com seus falatórios, como ela mesma designava os momentos nos quais se desabalava em palavras, pura poética. Desses áudios a poeta e filósofa Viviane Mosé derivou um livro, arranjando em versos a voz de Stella.

Com quais tradições você se identifica? A tradição do pensamento que desemboca na maioria de nós, brasileiros letrados, tem um ranço hoje muito questionado, mas que assim como tantos ranços do Brasil e do mundo, permanece, entranhado, difícil de metabolizarmos em outra coisa: o de achar que nossos instrumentos de convívio evoluem sempre, seta apontada para algo melhor, novidades superando o passado. A linguagem escrita como superior à oral. Balela, besteira, blábláblá, que outras tradições acusam e refutam.

A poesia, como expressão, torção e construção da linguagem, é anterior mesmo à língua falada, não me acanho em afirmar. Pinturas rupestres, dança, dengos, sabe-se lá que formas poéticas queimaram e se perderam no tempo. Depois, as palavras. Depois, a grafia. Hoje, simultaneidades, convivência. A poesia escrita, versos visíveis, a mancha gráfica, apenas maneiras diferentes de poetizar. Uma(s) outra(s), dentre muitas. Alteridade, não superioridade.

Outros ranços: a convicção de que mover-se ajustadamente dentro dos parâmetros sociais em muito absurdos, mas padronizados, seria mais saudável, mais corretos até, do que outros modos de movimento; a lógica do lucro; a primazia do produtivismo.

No áudio passado-e-presente-ao-mesmo-tempo, (a psicóloga?) pergunta a Stella Você não tem vontade de produzir alguma coisa, de ganhar dinheiro? Eu tenho vontade de ganhar dinheiro. Mas não tenho vontade de produzir. Ganhar dinheiro pra saciar a fome, sim, afirma mais à frente. Mas produzir? Pra quê? Por que esta é uma preocupação tão explícita de quem, em nome da sociedade & da sanidade, a interroga? Deixa Stella pastar à vontade, que nem um camelo como ela quer.

Em outro trecho, indagada, Stella contra-indaga “Me casei” como? “Casada” como? “Morou junto com homem” como? Como a perguntar o que queremos dizer quando usamos certas convenções linguísticas corriqueiras. O corriqueiro, afinal, não é (um)a verdade.

Escolho trechos “não tão poéticos” (não?) porque assim como a poesia falada é tanto quanto a escrita, a que não se pretende pode ser tanto quanto a intencional. Tanto tanta tão: poesia filosofia reflexão lindeza coisa sem nome que vale a pena. Um reino.

Deus tá no céu em toda parte. Existe ali uma vírgula? Corto – edito – avanço. Não tenho voz pra cantar mais. Corto, avanço: edito? Stella parece refratária. Diz que lhe comem com os olhos. Quando em tenho muita vontade de falar não encontro ninguém, quando não tenho voz vocês aparecem. Eu não queria me formar, não queria nascer, não queria tomar forma humana, carne humana e matéria humana. Esquiva para exibir, diz não entregando, sinuosa, um sim, que todavia, ainda, não é. O em baixo da língua(gem).

Carolina Maria de Jesus é o em (riste) cima da língua. Por sobre os monturos, por sobre si própria, seta certeira. Quarto de despejo, além de atual, impactante e interessantíssimo, integra a categoria fictícia dos livros necessários — na real não existem obras imprescindíveis, mas umas são menos incontornáveis que outras.

Um dos pontos de partida possíveis para adentrar sua complexidade é justamente a elaboração narrativa e estilística que faz da realidade. Se Stella, até onde sabemos, nunca escreveu um poema sequer, elaborando magipoeticamente a realidade que sentia, para Carolina a literatura, com todos os códigos de sua tradição, é uma fome, tão premente e presente quanto a do corpo. Não quer ser, e não é, denúncia pura. Absolutamente tudo o que constrói o conceito convencionado de literatura & escritora, e das boas, está nela e seu Quarto.

Entremeando a força brutal do que se conta e a latência do que se cala, pulsam ficções subjetivas — algumas, desejantes, mais evidentes; outras que apenas podemos imaginar. Costurando o todo, suas escolhas e limites (conscientes ou inconscientes, não importa), do quê e como selecionar, justapor, destrinchar, desdobrar, luzir até.

Tão fascinante quanto a própria construção da linguagem que pratica é a construção simbólica de autoimagem que a escrita dela, nela(-Carolina) e em si(-na escrita) perfaz e evidencia — em depoimento posterior ao livro, afirma: O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor. E li o meu nome na capa do livro. Fiquei emocionada. O livro tangível, o nome legível. Gullar disse que a poesia existe porque a vida não basta. É muito particularmente tocante como Carolina produz sua identidade e subjetividade a partir da escrita.  

A par das faces opostas sobre a relação de cada uma com a literatura/com a escrita, há paralelos. Dentre cerca de vinte cadernos, foi um jornalista quem pinçou os trechos que compõem o Quarto. Atentar para essa dinâmica — classista, sexista e racista, desde os 50/60, quando a obra foi gestada, até os 90, quando o jornalista-editor escreveu o prefácio à minha edição do livro — não diminui a obra nem a autoralidade visceral de Carolina, mas pode desdobrar nossas leituras presentes, como ouvir a voz de Stella desdobra suas falas.

Talvez que desdobrar as simultaneidades e(m) espelhos do tempo também seja um outro jeito de viver.

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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.