EXÍLIO E ALTERIDADE NO POEMA DE ALEJANDRA PIZARNIK – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


 

entre sacrifício e solidão moram as palavras, o poema. no caminho da dualidade para a ambiguidade, perde-se a fronteira que separa entrega e recolha. quem sabe seja destino algo pr’além de uma construção esperançosa ou da ação independente da vontade de um sujeito. seria então o apropriar-se da realização de ser isto a que veio a ser, seu próprio destinatário: o espelho. o poema habita a vida que carrega a ambígua displicência de seu acontecimento: escrita e assunção. o vértice onde a linguagem encontra a aparência – e nesta se dá a ver como resultado da escrita – integra o medo e seu martírio. destino e temor. em função da vontade de percorrer alteridades, fica a expectativa de que o poema de alejandra pizarnik de nós se aposse:

O poema que não digo,
o que não mereço.
Medo de ser duas
a caminho do espelho:
alguém em mim adormecido
me come e me bebe.

calo-me como um gesto autorrepressor. o poema que não digo, / o que não mereço, provoca silenciamento nas frases, mas também assume a constituição criativa até chegar a ser ponte e travessia. se poema for arquitetura – fruto de elaborações amadurecidas imagem a imagem –, a corporeidade inconclusa do que se poderia chamar de verso põe em xeque seu próprio arranjo. é o poema sendo mais que algo escrito ou prestes a ser dito. no entanto, e se tudo isso não passar de um arrumado composto icônico ou do desfazimento irônico de uma tal medida exata?

esse poema que não digo – propensão digna de um artifício autointerditado – denuncia o sacrifício de sustentar a alvura quieta da solidão. mas isso poderia ser uma alucinação de quem propõe clandestinidade aos versos antes de tomarem a voz do poema. então seria o verso afora o poema? essa derivação quase metonímica de uma causalidade inventada poderia enrijecer a nomenclatura da poesia ou ainda equipar de discrepâncias a justificativa para uma esquiva. a fuga ante a escrita ou, de repente, a proposição de uma dupla negativa seria um modo de afirmar que aqui estou no que escrevo tanto quanto desapareço no que conquisto.

há exercício. o que pretendo com a percepção ambígua do que nem chega a ser reflexo acumula o fôlego para assumir a respiração. tenho medo. medo de ser duas / a caminho do espelho. galgo a ironia em seu sentido pensativo, quando a correspondência com o interpelar se dá silenciosamente no próprio nome. do grego, eironeía abarca o perguntar, o dissimular. desse modo, seria o lugar verbal no qual estamos lançados como seres inquisidores e fingidores. a autopsicografia do signo converge para sua refutação porque é irônico desde a constituição referencial do seu significado. estar a caminho pode ser uma correspondência com a morte – ironia suprema da vida exatamente porque esta finda. a partir do questionar originário em sua essência semântica, a ironia pode ser que seja uma profusão de espelhos no confronto com o destino.

tenho medo de ser duas. no percurso da duplicidade à ambiguidade, o reflexo se refugia no limiar correspondente ao ponto de encontro entre dois rostos, e ambos dizem respeito ao lugar de evasão do poema. existe no improviso da consciência alguém que olha junto a mim, e que também sou eu. um eu que me ocupa sem que se crie uma analogia anímica ou bipolar. a duplicidade termina com o desdobramento. a ambiguidade extingue (ou tenta extinguir) o antagonismo entre quem tem fome e quem tem sede. mas parece ser impossível tal extinção.

e se houver alguém em mim que não conheço? e se as escolhas que fiz não foram minhas? quem está deste lado do vento antes de os espelhos se quebrarem após sua força de passagem? e os rostos nos fragmentos, quem? a caminho do espelho, tenho medo de ser duas. tenho medo de encontrar as palavras antes da solidão, o sacrifício em ser poeta num lugar impossível de linguagem. embora seja essa uma incoerência – um mundo sem linguagem. se bem que o poema é uma incoerência por supostamente arrumar em versos o descompasso sígnico dos enunciados desterrados. não há poema sem palavras porque todas são imagens – reflexos e originariedades.

há alguém. uma consanguineidade palavral que partilha o mesmo nome. o mesmo rosto. do corpo à linguagem, a conversão da expatriação. o desdobramento no qual se torna impossível repetir o instante desse encontro. solidão e vozerio. alguém em mim adormecido / me come e me bebe. a fome e a sede como um exílio interno e a estranha vontade em se fazer pertencer àquele rosto do espelho, ou ainda a exclusão desse mesmo semblante ante a alteridade. não dá para saber ao certo. tal qual um estrangeiro que mora em meu nome, repito o vaguear dos termos conquanto concentre numa poética de pluralidade a tensão entre recolha e expansão.

tenho apreço pela mobilidade, uma vez que desconheço o conceito de identidade enquanto preceito de restituição ao que se é. o poema é (seria?) interrupção. reconheço nas palavras a procura por algo ainda silente; e a composição – do poema ou da efígie no espelho – atestaria uma permanência no estado de trânsito. quem sabe, procurar seja uma excessividade de encontros com o que ainda não sei da fome ou da sede, apesar da devoração realizada por alguém em mim adormecido ou do medo que a distinção provoca. por sua vez, a alteridade seria o sumo da diferença, porque esta não se reduz à simetria dicotômica. teria a ver, isto sim, com o movimento singular de autorreconhecimento/autoexílio pertencente ao que nos poemas me elabora. uma recondução à ambiguidade.

dada a ontologia do outro em mim, este que me come e me bebe se sacia entorpecido no domínio do poema. um paradoxo, o estímulo aflorado das muitas identidades desta voz que se irradia, pungente no ânimo de quem escreve e habita a constituição tão una quanto múltipla da linguagem. são muitas línguas cruzadas na dicção suicida do verso que jamais termina. cá estou sempre a caminho, no assombro em ser duas, três, no infinito como reflexo do reflexo, da vida que é verso, do poema que é procura. a indeterminação, seja de quem adormece ou de quem permanece atento ao ritmo das imagens, é tão forte quanto o movimento desta escrita minimalista. daqui me vou, a este lugar pertenço.

p.s. o encontro com a poética de Alejandra Pizarnik provoca impacto com o que a gente considera ser possível reconhecer dos nossos próprios enfrentamentos. uma alusão tão evidente quanto discreta se propõe, na medida em que nos dispomos à leitura atenta de sua poesia. o poema, ela parecia saber, está muito além de uma composição racional, emotiva ou estética, ou apenas obediente a determinada técnica composicional. sem querer exagerar em qualquer lirismo emocional, tenho pra mim que um poema pode constituir realidades desde que estejamos disponíveis para leituras imersivas e para o autorreconhecimento da nossa própria condição existencial, paralela às provocações que a poesia pode desencadear. enfim, aqui foi possível um gesto de incorporação. o poema desencadeador dessa incorporação faz parte do livro Árvore de Diana (Relicário Edições, 2018), com tradução de Davis Diniz.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.