OS MÚLTIPLOS ACONTECIMENTOS DE ANNIE ERNAUX – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Ver pela imaginação ou rever pela
memória é a parte que cabe à escrita.

A reconhecida e premiada escritora francesa Annie Ernaux iniciou sua carreira literária na década de 70, contudo apenas há dois anos chegou ao público brasileiro. Em fevereiro deste ano, tivemos acesso a sua obra O acontecimentoL’événement, no original – traduzida por Isadora de Araújo Pontes e publicada pela editora Fósforo.

Embora o título faça alusão a um evento específico – que se passa na vida da autora na década de 60, quando ela tinha 23 anos de idade –, o substantivo se fixa a mais de um acontecimento, tanto no que diz respeito à própria narrativa, quanto ao que é capaz de provocar em seus leitores. O livro, de fato, acontece em cerca de setenta páginas e é capaz de reverberar por muito tempo em quem as lê.

Os livros de Ernaux costumam ser categorizados como autobiográficos. Com O acontecimento não é diferente. A obra trata do aborto pelo qual passou a autora, em 1963, quando era ainda uma estudante de Letras em Rouen. É relevante destacar que, na França, a pílula anticoncepcional só foi liberada em 1967 e o aborto legalizado em 1975.

A possibilidade de uma gravidez, que ronda as mulheres sexualmente ativas, faz parte da vida feminina tanto quanto o conhecimento, ainda que vago, sobre como interromper uma gestação. Ernaux observa que:

Embora muitos romances se referissem a um aborto, eles não forneciam detalhes a respeito do modo como ele se dava exatamente. Entre o momento em que a moça descobria estar e aquele que não estava mais, havia uma elipse. Na biblioteca, procurei nos arquivos a palavra “aborto”. Todas as referências eram de revistas médicas […] mas os artigos só tratavam das consequências do ‘aborto criminal’ e isso não me interessava. (p. 25)

Ou seja, de algum modo, não só sabemos de ouvir falar de outras mulheres como dos livros que lemos. Como leitora, de meu repertório particular, de imediato, vem-me à lembrança um livro erótico francês, do século XVII, o qual menciona o fato de existirem certas substâncias passíveis de interromper uma gravidez.

No entanto, esse conhecimento do uso de determinadas ervas foi sistematicamente reprimido durante séculos ao ponto de – tanto na década de 60 na França, quando o aborto ainda não havia sido legalizado, como ainda hoje no Brasil, em que é tipificado como crime – o assunto ser sempre tratado em segredo, à boca miúda. Não obstante, a maioria de nós mulheres sabe como fazer um. Os meios de provocar uma interrupção parecem compor uma cultura feminina secular. Afinal, é nosso corpo que gesta.

Enquanto o namorado da narradora não se envolve com a situação e negligencia a seriedade dela, e os médicos, os quais a jovem procura, negam-se a realizar algum procedimento abortivo; é por meio do contato com uma mulher mais experiente e empática que Ernaux consegue chegar a uma senhora que realiza interrupções, a “fazedora de anjos”. Isto é, para que o aborto acontecesse foi preciso uma rede de mulheres. Justamente por seus papéis – por seu conhecimento e/ou liberdade –, são mulheres sujeitas às estigmatizações das quais nem a narradora está imune à reprodução: “Na luz da rua, fora de seu antro, com sua pele cinzenta, ela me provocava aversão. A mulher que estava me salvando parecia uma bruxa ou uma velha cafetina (p..51)”

Além do procedimento clandestino do aborto em si – suficiente para impactar qualquer leitor –, há os temas que o orbitam. Apesar de Ernaux ser uma francesa branca, O acontecimento fala muito a um público brasileiro, visto que a narrativa é perpassada constantemente por questões de classe, desde as razões que motivam a narradora a interromper a gravidez até como o procedimento ocorre e a forma como é atendida no hospital em seguida.

Conhecemos no Brasil a distância entre mulheres sem recursos e mulheres com recursos para pagar por um aborto. Tal diferença econômica, atravessada também por questões etnicorraciais, é determinante em relação à segurança com que o procedimento é feito e, consequentemente, o risco de morte que a mulher corre. Essa identificação entre a narrativa e a realidade de nosso país é capaz de remeter qualquer leitora brasileira à angústia de uma gravidez indesejada. Talvez por isso mesmo seja uma leitura necessária aos homens.

Outro aspecto da obra que não passa despercebido é o fato de a autora escrever sua escritura:

([…] Pois a perturbação que sinto ao rever imagens, ao voltar a escutar palavras, não tem nada a ver com o que eu sentia então; é apenas uma emoção da escrita. Quero dizer: que permite a escrita e constitui o signo de sua verdade.) (p. 55)

Ou seja, Ernaux observa – e materializa – o processo de transformação da experiência do aborto em um acontecimento na linguagem e a dificuldade em apreender uma memória vivida décadas antes:

([…] me obrigo a resistir ao desejo de descer precipitadamente os degraus dos dias e das semanas, tratando de conservar por todos os meios – a busca e o registro dos detalhes, o emprego do imperfeito, a análise dos fatos – a interminável lentidão de um tempo que se espessava sem avançar, como o tempo dos sonhos). (p. 30)

Recriar o evento por meio da escritura dá a ele um corpo que não lhe foi dado na época em que aconteceu: “Não pronunciamos nenhuma vez a palavra aborto, nem ele nem eu. Era uma coisa que não tinha lugar na linguagem” (p. 36).

Uma palavra que não se fala, ainda que a circunstância especial permita, é a constatação do tabu, construído – como todo tabu – com o passar do tempo ao ponto de ser “impossível determinar se o aborto era proibido porque ruim, ou se era ruim porque proibido. Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei” (p. 29).

Para Ernaux, a escritura do acontecimento, essa materialidade significante que então lhe é atribuída, liberta-se de quem a escreve e se torna vulnerável ao olhar do outro: “Não terei mais nenhum poder sobre meu texto, que será exposto como foi meu corpo no Hôtel-Dieu.)” (p. 61). Todavia, a autora se arrisca, se lança à exposição, uma vez que entende seu texto, seu corpo como instrumento político.

Annie Ernaux considera que um texto como O acontecimento pode provocar “irritação, ou repulsa” ou pode ser “considerado de mau gosto”. Entretanto, segundo ela, “ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá direito imprescritível de escrevê-la”, pois “não existe verdade inferior”.

Com esta afirmação, a autora também lança luz sobre a maneira como a literatura é estabelecida, a saber, a partir das experiências masculinas postas como universais. Já as femininas são vistas como particulares a um grupo – a propósito, metade da população mundial. É nessa direção que ela afirma precisar contar sua “experiência até o fim”, caso contrário estará “contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e” se “acomodando do lado da dominação masculina do mundo” (p. 35).

_______________________
Renata de Castro
 é professora e doutora em Literatura pela UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.

Imagem Claire Merchlinsky