DROPS DE PROSA – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


 

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Num dia verde, porque verde é a cor da cura, acordou e voltou a ter vontade de viver. Foi feliz, por um tempo. Movia-se, como um gato. Depois entristeceu de novo.


# do cacto

— Olha, mana.
— Tá minando…
— Será se é água mesmo?
Primeiro o dedo na pocinha, quase encabulada ainda de escorrer pouco a pouco sobre o concreto. Na língua a surpresa, e desce o dedo até a gota e engordando pendente do cacto. Ele sente o mesmo arrepio gostoso que a irmã, antes que ela diga.
— Tem gosto de… mel.
— Deixa eu provar.
Raspa o dedo no áspero. Lambe.
— A gente conta pra mãe?
— Mas ela não vai sentir o gosto…


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Perdoar deus por nos ter existido: esta doência infinda delícia, como um clarão no mais fundo escuro onde nem mais palavras como clarão, escuro ou qualquer outra têm sentido que dirá sentimento.


# frases de um fim de semana
“enquanto eles tavam no Togo, a menina foi ao banheiro e nunca mais voltou”
“esfregação genital é opcional”
“eu lembro de um aniversário do Félix… eu nem tava nesse aniversário”
“tá mais tirulim que pan”
“é a regra do quintal, mana, não a tua. tem que respeitar a regra do lugar.”


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Não é que eu buscasse uma transcendência qualquer nos corpos em que antes buscava apenas sofreguidão. Mas algo sobre eles, além de si próprios, agora me interessava. Melhor: instigava. Inquiria sobre o além daqueles corpos.
E o carnaval mal havia começado.


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— Nao é acarajé, é bolinho de Jesus.
— É o quê?
— Bolinho de Jesus.
— Ah, vai se foder — eu não disse, porque afinal é preciso ser didático e preferir a comunicação não-violenta, mas antes que eu não dissesse, pude quase ver-me, claroaguda, a dizer. Contive-me, a custo e calma, e o que disse então, com certa dose tentativamente calibrada de irritação na voz, porque afinal também não sou santa, e além do mais, um quê de tome-tenência me facilitaria o trabalho, o que eu disse então foi:
— Olha, mona, eu respeito a tua religião e tu respeita a minha, ora veja!


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De noite tinha os sonhos mais prosaicos. Nunca voava, nem comia estrelas (de cinema ou de nêutrons), não visitava Istambul entendendo-se com todos à sua volta numa língua inexistente. Facas do dia a dia, diálogos sem tesão, lampejos, lacunas, as plantas do quintal, com seus nomes mesmo, era dos restos mais baços de quando acordado a carne dos seus sonhos. Triste.

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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) _(Autografia, 2019). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook, no Instagram e uma coluna quinzenal na revista Vício Velho.