coluna | palavra : alucinógeno
sua morte foi para mim o que faltava para eu nascer. ainda era só linguagem e você me desencadeou neste poema. poder dizer que somos criação é o desejo de existir naquilo que simultaneamente é além e está por vir. você me confessou os ritos genesíacos e nos tornamos passageiros da destruição. aqui uma teoria do poema se funda como fluido: o leite, o sangue. a primeira boca nos recebe, bebe-nos e nos vomita para dentro do estômago. estamos afeitos ao que sobra da regurgitação, como o verso tomado antes de se provar da sua violência. você me disse que uma teoria do leite é uma teoria do poema e também do / impossível. estamos livres do catecismo do amor como ilusão.
vida, tal qual um objeto cujas extremidades são impensáveis. então, morte não seria margem, mas correnteza. a fluência da extinção permeia a vitalidade de nossos atos. ouvi dizer que criação se incorpora de fenecimento no trânsito involuntário dos que nascem em seus próprios alcances. destruição é criação. você me conta das múltiplas parturições, dos alívios mediante a ruptura com o futuro. não há quem realmente resista ao impulso de se doar ao passado com vistas ao fim de semana que nunca chegará, pois o amanhã é um conceito. conversamos sobre violência, quero dizer o quanto tenho medo, mas você me chama para dançar.
deslizo-me enquanto danças como um esqueleto queimado
na borda da vida
a pureza dos ossos calcinados me emociona e eu não sei dançar. resta-me apenas a procura, mas percebo o quanto é impossível encontrar o fundo, a borda, a extremidade na unção dos enfermos. você escorrega entre as palavras e eu te pergunto quando estivemos de fato exaustos. quero saber do que temos no tempo em que não percebo mais a quem chamar de irmã. mas você se nega a mencionar o quanto é necessário para que o verbo traga seus alicerces à língua. ao longe, do alto do que fora nossos sonhos nalgumas tardes de chuva, você se volta para meus sobressaltos e diz com o afeto dos anjos inexistentes: Entenderás que no princípio nunca foi o verbo, senão a hérnia / O inicial prescinde da palavra que arrebenta a córnea da vida.
a saliência é tanta que causa dor. desponta na carne das palavras o incômodo pelo que se define por excrescência. há algum artifício por onde a sintaxe escapa de seus inícios? você percebe aonde quero chegar e diz revoluções como se consagrasse a própria dúvida ao devorar a carniça de Deus. afinal, o que nos resta é o não saber, o rasto e o resto do que ainda poderemos ser. podemos, contudo, ser espera? o que diria eu ao meu irmão, à minha irmã? como deixar de suspeitar de que isso que nos enreda e tomamos como vida não seria um ensaio para o próximo poema? – este que está prestes a ser incinerado junto com os ossos. você sente a violência de uma mãe revoltada ao perder seu bebê. você a ama demais. o mundo que se forma em seu exercício amoroso encarna a complexidade dos mitos, quando estes propõem a realidade em sua mais possível – incompreensível – densidade. ouço atento o que responde a quem não mais conheço:
Arrasto tua morte com a orfandade que o fratricídio me deixou,
[…]
eu tinha de morrer-te para conhecer o sentido da justiça
morrer é um verbo estranhamente coletivo. acho que não estamos acostumados a fenecer fora de nosso corpo. essa é uma aprendizagem que o poético proporciona. mas veja, você diz que poesia não é apenas a materialização do poema, a maneira de se escrever na ponta da imagem. você me ensina que poesia está na essência dos fluidos, e por aí chegamos que uma teoria do leite é também uma teoria do poema. o líquido que inunda nossa fome originária é aquele que aplacará o choro tanto quanto nos será a lembrança da perda, do que não mais será possível desde o rompimento da nossa gestação, da concepção como devastação. você arrasta minha morte, mas tenho dificuldade de compreender isso. não sei como me desprender do meu verbo. morrer ainda é um anúncio da minha autonomia. no entanto você cometeu um crime, e este te converteu no elo entre criação e destruição. o fratricídio te tornou sua própria fronteira. você, sua travessia. o sentido de justiça de que tanto fala ainda soa como aquilo que perco ao tentar agarrar um instante. você precisava me morrer. estar comigo nessa cumplicidade quase inacessível. a poesia será o aprendizado da morte.
eu te pergunto sobre o futuro. você volta a me olhar, como se a sabedoria do mundo fosse regida entre os movimentos dos olhos – e talvez seja mesmo. você me fala sobre o agora, o quanto ele se estica para o que é antes e depois, sem abandonar o sentido de presença. morrer algo / para que continue acontecendo / eternamente, você me diz. te pergunto se isso seria o tal do acontecimento poético; não uma ideia, mas sua apropriação. você dá a entender que é por aí, que o acontecimento é poético porque se dá a ver também no que achamos ser ausência, que poesia é a criação se realizando enquanto se arruína; um desencadeamento verbal de existência. o eterno não teria a ver com falta de ponto final. pelo contrário, o fim é o agora, o incessante, por isso é criativo, porque faz nascer quando morre.
você me disse que pensamos enxergar pela mecânica da luz, que a engenharia do poema transcende a materialidade do verbo. mas como? você aponta para o silêncio e reinventa sua estrutura. chega bem perto e diz que princípio é mais que começo e que estaria em lucidez de perdição com os limites razoáveis do real. lembre: a palavra que arrebenta a córnea da vida é dispensável porque a visão real das coisas não está no âmbito da clareza. vivemos o desfoque. vemos o incompreensível, mas preferimos crer no alcance lógico das mãos. depois dessa sua fala, dou graças ao que não conheço. você espera. talvez seja esse um prólogo, até que me diz: as / palavras são fantasmas que atravessam / todas as coisas. palavras seriam mais que luz, penso. caio nesse paradoxo porque se no princípio nunca foi o verbo, mesmo assim as palavras habitam a travessia. percebo que não há paradoxo, e sim o vício do hábito pela ordenação dos fatos. o despropósito nos comunga.
talvez seja o sangue uma comoção de espíritos, te falo. você me conjuga: tuas águas têm sabor / de linguagem que não sei morrer. eu te matei para que você pudesse me sucumbir. a inquietação nos move nessa conversa. a boca celebra na saliva o que chega da linguagem pela violência da língua. você prova o que digo e faz pertencer seu nome às coisas. a gente sonha: enquanto não houver batismo, nasceremos na constância das palavras, também por serem tão imortais quanto efêmeras. são como a fragilidade do corpo, igualmente sólido e inabitável, e que em seu instante de cadáver perde a identidade. torna-se peça. massa imóvel. no entanto, você aponta a beleza dessa inércia: a poesia é a perfeição do morto: / o incorruptível, a selva encadeada. do livro de abismos, somos suas páginas.
o encadeamento das hostilidades – selva – compõe poemas. a gente alcança algumas semânticas e não para de morrer. a pulsação perfeita do repouso. você continua. gira. diz sem privilégios: faço amor com tua morte. nunca vi em minhas fecundações alguém que me morresse tão hediondo quanto você me vive. habita o entreato das cenas ao desfazer o roteiro dos amanheceres. há sol, chuva, o conflito das estações concentrado no quase dos desejos. penso que fazer amor com a morte é como gozar além do corpo e aguçar a corporeidade no que há de inefável. penso também que poderia ficar aqui sem cronologia alguma e me deixar raiar com cada frase sua. você sabe o quanto elas me ensinam sacrifícios para que eu reconheça alegorias de infâncias. talvez seja isso, talvez você partilhe da engenhosidade primal das coisas e perverta realidades nelas. uma artífice.
você volta, você sempre volta e me diz: levantam-se teus restos entre os losangos para dar lugar à / engenharia da poesia. do que me resta e salva, a poesia institui o espaço das ruínas. os escombros de minha linguagem, os afetos do seu domínio, os versos, as frases, as imagens que nos comungam. morremos neste minuto enquanto ocorre a reformulação de instintos, estes com os quais movemos crimes contra a paz do ócio. a poesia nos é em construção ambígua com a vida antes da própria gênese. a gente quer o que a gente quer, eu quero o sentido impresso nas palavras que escrevo, o poema feito aqui e agora, o instante. você desanda nas origens – no princípio nunca foi o verbo. parece ser sempre uma questão de incorporação. a voz, além, nem palavra. você me provoca: quer habitar-me naquilo que não pode ser?
acho que é isso, habitação. incorporar, tomar parte, ser unidade na complexidade das diferenças. o movimento. poesia. não poder ser. tento responder: só posso habitar naquilo que não posso ser. enquanto sou, deixo de ser o que já era, e isto que já era nunca tem fim. penso que existir seja uma apropriação do que se torna presente, e a presença conjuga o movimento simultâneo entre o que está sendo e o que virá a ser, tanto quanto o que já foi. uma tríade. o que foi, o que é, o que será. memória. fico confuso em seus poemas, sua engenharia me desacelera. bebo o leito com a fome de uma teoria recém-nascida. nasço o poema. você faz amor com minha morte. vingamos alguma vida sem saber bem o porquê. sua morte foi para mim o que faltava para eu nascer.
p.s. a sensação pós-leitura de História do leite (edições jabuticaba, 2021), de mónica ojeda – com tradução de ayelén medail –, é algo que ainda não sei dizer. talvez este texto que escrevi seja uma infâmia, talvez tenha sido a necessidade de saciação, e a única forma que conheço de me empanturrar poematicamente acontece pela escrita/leitura. escrever como devorar, tornando-me parte com o que é grafado. as imagens como incorporação ou o ato ingênuo de inventar desejos. não sei. talvez não venha a saber ainda por muito tempo. o importante é morrer. cometer um crime como escrever um poema. um dia, quem sabe.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.