Coluna | Sibila
Twenty-seven years is enough
Quando se fala no movimento de contracultura denominado Geração Beat, os primeiros nomes que surgem são Allen Ginsberg, Jack Kerouac e mais alguns nomes masculinos. Pouco se sabe sobre as escritoras componentes desse grupo surgido nos Estados Unidos nos anos 50. Às mulheres, relegaram, como de costume, as personagens de amigas ou amantes. No entanto, elas existiram e não se definiram por seus companheiros.
Assim foi com Elise Nada Cowen, conhecida inicialmente como a namorada de Allen Ginsberg. Como Cowen não publicou em vida, há muita informação desencontrada em sites a respeito de sua poesia. Por isso, para escrever este breve texto, recorri ao estudo sobre a escritora estadunidense feito por Emanuela Siqueira.
É apenas após seu suicídio aos 29 anos, em 1962, quando se jogou pela janela do sétimo andar do apartamento de seus pais, que o nome de Elise veio a público. Particularmente, a mim Cowen chegou com dois poemas, em 2017, por meio da plaquete Meninas que vestiam preto, publicada pelo Selo Demônio Negro.
Elise escrevia diariamente, alimentando vários cadernos com o exercício da escrita cotidiana. Escrita e reescrita. Era leitora de autoras anglófonas como Emily Brontë, Mary Shelley e Emily Dickinson, mas tinha uma dedicação maior ao estudo da poesia desta última. Segundo Joyce Johnson, autora de Minor Characters – relato de sua experiência com o grupo da Geração Beat –, com quem Elise estudou na Barnard College, Cowen também dispensava atenção às poesias de T.S. Eliot e Ezra Pound. Isto é, Elise Cowen interessava-se por uma tradição de literatura de autoria feminina de língua inglesa, sem deixar de revisitar os cânones masculinos. Esse fato não surpreende se considerarmos que a proposta central da Geração Beat era a exploração de novas formas de escrita poética.
Podemos observar o conteúdo dos versos abaixo traduzidos por Rafael de Sousa nessa perspectiva, a de quem revisa o cânone:
Eu peguei a cabeça dos mortos
Para fazer a minha leitura
Encontrei meu nome em cada página
E toda palavra uma mentira.
I took the heads of corpses
to do my reading by
I found my name on every page
and every word a lie.
Sendo o cânone literário majoritariamente masculino e as representações nas obras em sua maioria femininas, cabe cogitar para os versos acima um eu-lírico de uma mulher que não se identifica com seu nome; uma vez que o nome é uma escolha alheia, colocado por meio de um movimento de fora para dentro. O contexto em que esse nome se encontra, nas páginas, é composto por palavras que mentem. A pergunta é: quem as escreve?
Com a morte de Elise Cowen, seus vizinhos, amigos de seus pais, queimaram seus cadernos e anotações pelo conteúdo erótico e heterodoxo que continham. De família judaica, Cowen tinha um comportamento considerado problemático por seus pais, tendo, por isso, sido internada mais de uma vez em clínicas psiquiátricas, assim como tantas mulheres donas de suas faculdades mentais. Basta lembrar que na década de 50 nos Estados Unidos a lobotomia era um procedimento recomendado a mulheres que fugissem ao padrão esperado pela sociedade. E não era esperado que as jovens mulheres quisessem independência financeira ou tivessem uma orientação sexual fora da heteronormatividade, como Elise.
Depois da queima do material de Cowen, sobrou apenas um caderno, salvo por seu amigo, Léo Skir, com 91 poemas, escritos entre 1959 e 1960. Parte desse conjunto de poemas foi publicada esparsamente, e alguns deles chegaram a ser modificados por Skir, que explorou a imagem da poetisa atormentada e suicida.
Ainda hoje, é fácil encontrar em blogs poemas modificados por Skir. Um exemplo bem expressivo é:
The lady is a humble thing
Made of death & water
The fashion is to dress it plain
And use the mind for border
Em lugar de lady, o poema original registra body o que provoca outra interpretação, muito mais ampla do ponto de vista da humanidade e muito mais profunda dentro de uma perspectiva existencial. Adriano Scandolara assim o traduz:
Feito de morte & água
O corpo é uma coisa humilde
A moda é usá-lo básico
E que a mente o delimite
Parece que Skir, ao mudá-lo, pretendia dar uma conotação política ao poema, questionar a posição da mulher na sociedade. Entretanto, o poema inclina-se mais a uma reflexão sobre a dicotomia corpo versus alma/mente; assim como água versus morte, se considerarmos que a água é símbolo da vida na visão da filosofia ocidental.
Em 2014, Tony Trigillio teve acesso ao caderno de Cowen – até então sob a guarda de Skir –, organizou suas anotações e revisões, acrescentou alguns fac-símiles e publicou-o sob o título de Poems and Fragments. Isto é, não faz tanto tempo que o grande público teve a possibilidade de chegar à poesia fidedigna de Elise Cowen.
Lucien Carr – outro componente do movimento de contracultura – apelidou Elise de elipse/eclipse. Segundo Emanuela Siqueira, outros escritores da Geração Beat, incluindo Joyce Johnson mencionada mais acima, usavam esse apelido para dizer que Cowen estava à sombra de Ginsberg. Não sabemos quanto esse desprezo a afetava e afetava sua escrita. No entanto, não é mais possível pensar em uma Elise elíptica, em uma Elise eclipsada desde que seus textos foram publicados.
Podem ser encontrados em sites e blogs alguns de seus poemas traduzidos para o português. Para cá, escolhi apenas poemas de quatro versos – como este abaixo traduzido por Rafael de Sousa –, pois Cowen parecia seguir a prática de Dickinson, que cultivou a escrita de quadras. Isso demonstra que a despeito de um eu-lírico ferido pelo movente que não se move, sua letargia era produtiva e lírica – e um tanto cabalística –, para nosso prazer como leitores.
No meu cérebro estão as chagas
do que se move sem se mover
No meu cérebro há chagas
da letargia sem fim
On my brain are welts from
the moving that never moves
On my brain there are welts
from the endless stillness
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.